"1789", por Pedro Doria

quinta-feira, abril 19, 2018 Sidney Puterman

Há muitas inconfidências mineiras. Há muitos Tiradentes. Seria bem mais simples preservarmos a versão idealizada do herói da liberdade. Algo que pudéssemos ir para a rua neste 21 de abril e fazermos um jogral. "Tiradentes!" gritaria um político ao microfone, a praça cheia. "Presente!" diria um ativista de bandana. O político aumentaria a intensidade: "Tiradentes!" Uma mulher negra, com roupas coloridas à africana, responderia, para júbilo da multidão: "Presente!" E assim ganharíamos o dia. Não importa que este mito popular tivesse sido formatado e ampliado pela ditadura militar, para significar, em tese, o pensamento oposto dos que o celebram agora (não importa mesmo, pois são opostos apenas em tese). A pena é que aquele Tiradentes fácil da minha infância, do glorioso samba-enredo do Império Serrano, não existe mais. O mártir cabeludo foi descascado como uma cebola. A última lasca a me arder os olhos foi fatiada por Pedro Doria, com seu "1789". Há quem superestime a participação de Joaquim José da Silva Xavier ("era o nome de Tiradentes", já me ensinava o tal samba na infância). Outros a minimizam. Não é realmente o caso de Doria. No seu livro, o alferes é o protagonista. O ator principal. Mas a trama se desenvolve ao redor dele, em círculos concêntricos, cabendo a ele o protagonismo de uma das lâminas do miolo. Esta é a história que nos traz o autor. Para entender seu ponto-de-vista, a chave está no final, no posfácio, onde ele disseca as fontes. Entre elas, elogia aquele que considera o melhor dos títulos a nomear livros sobre a inconfidência: "O diabo na livraria do cônego", de Eduardo Frieiro, publicado em 1946, referência a um dos intelectuais da ação. Disserta sobre os antigos historiadores da Inconfidência Mineira, se estende sobre as hipóteses de trabalho de cada estudioso do tema. Ali o cerne da sua pesquisa ganha uma lente de aumento. Mas o passo o passo com que conduz a sua versão do que terá sido a Revolução Brasileira é desdobrado (e bem) nos enxutos parágrafos da sua obra. Doria radiografa os grupos de interesse por trás da natimorta tentativa de rebelião contra a Coroa portuguesa e os reúne em três agremiações: os cobiçosos, os idealistas e os endivididados. Para entender bem como Doria vê o que se passou, vale lembrar a frase de James Carville, marqueteiro de Bill Clinton, mais de um quarto de século atrás: "É a economia, estúpido." O eixo da ação da inconfidência era bem menos filosófico do que a versão romanceada. A base que financiaria a inconfidência viria, em suma, dos contratadores endividados. Se você não sabe quem são, não tem porque se acanhar, porque nenhum de nós sabe o que verdadeiramente importa. Veja o STF hoje. Mas avancemos sem digressões. Pedro Doria nos explica os contratadores e estende sobre a mesa um generoso panorama das relações de Portugal com o Brasil. A Colônia era rentável, mas era uma imensidão distante para administrar e de onde tirar o justo lucro custava caro. Assim, o reino português vendia os... impostos! Os contratadores assumiam a tarefa, que cabia ao governo, de cobrar os impostos decorrentes da circulação de mercadorias. Antecipavam a Portugal um valor previamente acordado, que se supunha seria a arrecadação mínima dos tais impostos de arrecadação comprada. Caso a cobrança lhes rendesse menos, ficariam no prejuízo; ultrapassando a estimativa acordada, era lucro. O uso da força e a auditoria in loco cabiam ao reino; ao contratador cabia a administração da cobrança, em todas as suas etapas, incluindo a tesouraria. Porém, nas sucessivas renovações entre Portugal e os contratadores, uma fortuna ia ficando por pagar, sob as mais diversas alegações. Fato é que os representantes deviam toneladas de ouro ao reino e não tinham como se acertar com Lisboa. Uma revolução que quebrasse os vínculos entre Brasil e Portugal seria um presente dos céus. É aí que entram os inconfidentes. A Inconfidência Mineira, caso vingasse, valeria uma fortuna para os contratadores, que se eximiriam de enviar ao reino as toneladas de ouro em atraso. Por isso valia bem gastar uma fração destas toneladas para custear a revolta (comento aqui um dos ângulos da estória contada por Doria, um aperitivo que estimule quem me leia a beber diretamente do texto do autor). Mas, como dizia, ninguém ali era santo e cada um tinha suas razões. Os inconfidentes estavam muito longe dos românticos intrépidos que imaginamos. O que eles mais queriam era se dar bem. Após Tiradentes, o segundo nome mais famoso da Inconfidência é Tomás Antônio Gonzaga, um alto funcionário público que perdeu status e dinheiro com a chegada do novo governador, Luís da Cunha Meneses, o Fanfarrão Minésio (que, para montar seu próprio esquema, quebrou o esquema anterior e motivou a trama inconfidente). Tipo um Temer pós-Dilma, um hipotético Bolsonaro pós-Temer, um Crivella pós-Paes ou qualquer outra desgraça que lhe ocorra. Então a trama inconfidente tinha muito de quero-o-meu-de-volta. Ao redor de Tomás giravam uns outros sem poder e até mesmo alguns idealistas de verdade. Mas havia também muita gente na expectativa de enricar - e, para os excluídos da elite, participar da derrubada de um poder era uma maneira de cavar lugar no poder que o substituiria. Fato é que a propalada Inconfidência Mineira foi a história do que não houve (da mesma forma como não houve a derrama, escorcho do Estado sobre o povo, que se imaginava seria o detonador da revolta). Resumindo assim, e sem avançar no delicioso script que Doria nos oferece, temos um painel relativamente sóbrio do que foi a Inconfidência. Como acepipe adicional, vale ressalvar a ágil costura de perfis que ele nos oferece em "1789". Muito além de Tiradentes, temos os necessários Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, mas também temos de brinde os perfis do Marquês de Pombal e Thomas Jefferson, com revelações sobre a participação indireta deste último nas tramas inconfidentes, possivelmente por um ramo carioca da revolução que nunca veio a público. O livro é curto e o leitor, este curioso ávido, queria mais. Guloso, choraminguei comigo mesmo que vieram menos parágrafos do que os que paguei. Esganação. A obra é de tamanho razoável, paciência. O livro traz também informações típicas de rádio-relógio ("Você sabia?") que eu e a torcida do Botafogo jamais imaginaríamos. Que Joaquim Silvério, o traidor oficial do Brasil, era tio do Duque de Caxias (algo como o Gigghia ser tio do Dunga). Que quando estava em vias de ser preso, quem tentou ajudar Tiradentes foi um rico filho de Chica da Silva (no meu subconsciente a eterna bisavó da Zezé Motta). Que Ouro Preto, então Vila Rica, já foi a maior cidade do país. Que o sedutor Gonzaga, o Dirceu de Marília, era baixinho, gorducho e careca. Não deixa de ser curioso, embora provavelmente eu vá esquecer de tudo isso. Talvez lembre do Gonzaga. Por fim, temos Tiradentes. Hoje ele tem muitas faces e a face escolhida por Doria não é simplista. Abre mão do maniqueísmo que faz dele ou herói grego ou idiota manipulado. Doria fala dos negócios e do tal alferes, esse legítimo brasileiro, ansioso e ambicioso, destemperado, pé-de-boi. Corajoso. José Joaquim da Silva Xavier. Um nosso conterrâneo que pegou o bonde errado, na hora errada, em direção incerta. Pagou o maior preço: foi o único tarifado com a vida. Seu prêmio foi ser colosso na posteridade e figurinha de Mártir da Pátria. Virou palácio, praça e medalha. Nada de escravos, nada de fazendas, nada de ouro. Sei não. Levo pouca fé que ele levasse este título de herói póstumo em grande conta. Acho que Tiradentes queria o dele aqui na Terra. Em espécie.

Editora Nova Fronteira, 264 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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