"Rio em shamas", por Anderson França, Dinho

terça-feira, novembro 28, 2017 Sidney Puterman

Anderson França, o Dinho, manda bem. Vi a dica da Cora Ronai, encomendei na Amazon e me diverti. Acabou que larguei o livro, em meio a outros que estava lendo; aí li tudo outra vez. Dinho é cheio das firulas estéticas e sua força está em desmontar o formal com seu palavreado da periferia. Ele areja a leitura com o "falar errado" que há um tempo atrás indivíduos que se intitulavam educadores sugeriram como currículo escolar. Pior: com chancela governamental (cá para nós, no texto autoral é delicioso, como grade escolar é uma bizarrice). Mas as virtudes de Anderson França não se limitam à prosódia marginal - Dinho é debochado demais, seu humor escrachado é tipo top. Em uma das boas crônicas do livro, a "Nunca antes na história desse país" (talvez melhor nomeada com uma das suas frases de abertura, "A classe D vai à suruba"), o autor demole o mistério por trás das casas de swing: "É meio que uma feira de São Cristóvão em dia de Elba Ramalho, só que com luzes baixas em corredores apertados. E ninguém trepa. É sempre todo mundo procurando 'a boa'. A 'boa' seria todo mundo trepar." Dinho tá com a verve: "Mas tem um motel em Madureira que é o point dos swingueiros. Funk pra caralho, combo de cerveja no balde de plástico, um cheiro úmido de inhaca, um chão escorregadio de porra, É UMA BENSSÃO. Uma metelança de uns 10 nego beligerante com a piroca na mão pra duas mina magrinha. É basicamente tudo garota de programa, mas tem a fantasia de ser festa de casal." O cara soca no linguajar. É uma deliciosa ducha gelada para quem tá assando no calçadão de Bangu. A recusa ao uso do plural traz o frescor do populacho. "SAC" é outra imperdível da lavra. Mas - tem sempre um mas - França ainda tem uma Igreja da Penha pra subir e provar que seu talento não se restringe a um folclore monocórdio. Porque seu hilário, e contundente, conteúdo padrão é a repetição sistemática de um mesmo ponto de vista: um sujeito da favela, da periferia, falando as verdades da vida de pobre, detonando as hipocrisias de ambos os lados do apartheid social e denunciando o que já é comumente denunciado, só que com seu tempero irreverente. É bom para um sprint (como o daqueles que ele zoa do carioca atrás de ônibus), mas não é lastro para uma maratona. Por enquanto, o clichê da revolta social deixa rançosa a sua literatura, gordamente diluída após a sucessão bem-humorada (e promissora) de gagues e trejeitos. Diretamente da laje da classe preta fudida suburbana lança seus petardos moralóides nos córnos dos ricos brancos da Zona Sul. "E você usando essa camisa da Reserva, toda otária?" Neste segmento do vestuário, Dinho é definitivo: "Os otários usam Lacoste." O autor profere um repetido e continuado julgamento contra uma classe social (à qual ele designa a rubrica de "brancos e ricos"), que acumula os piores defeitos, e faz a apologia do pobre, do negro e do nordestino. Tolice. É o velho mimimi preconceituoso de sempre, só que com o sinal trocado. Na revisão dos textos que compõem o livro, não reparou que sua crítica à escrotidão da mulher rica ("Fila do balcão da Polícia Federal. Mulher loira, magra, com uma camisa polo da Lacoste, dizendo em voz alta que não ia ficar na fila porque ela tinha o direito de ser atendida em prioridade, por causa da filha pequena, no colo da única pessoa não-loira dessa cena, uma senhora com cara de alagoana"), vira elogio oito páginas depois, como prova da esperteza da mulher pobre - no caso, a própria mãe: "Minha mãe desenvolveu essa técnica de colocar os filhos em pontos estratégicos das filas. Funcionou no mercado nos tempos da ditadura, funcionou nas filas do Banerj, cada filho de menó numa fila, quem chegasse primeiro chamava a mãe." Sua recriação do passado dá uma venezuelizada no Brasil. "O mercado abria e era uma senha pra cada um, tu só podia pegar 3 quilo de cada coisa. Por isso minha mãe botava minhas irmã em partes diferentes da fila. Assim, a gente conseguia pegar uns 5, 6 quilo." Ou seja, em um determinado tempo (1982) e lugar (Rio), a senhora genitora do autor viveu em um ambiente de restrição de compra de alimentos, que ela, esperta, burlava, visando ter um benefício maior que seus iguais, também na fila, mas menos espertos. Não vou aqui recriminar a mãe do Dinho, que nem conheço - vendi o peixe pelo preço que comprei -, nem o próprio Dinho. Rapá, já fiz coisa MUITO pior que isso. Mas a mãe do cara evidencia que agir de forma correta não é questão de ser rico, é questão de cada qual. Esse blablablá contra os "ricos" é CHATO PRA CARALHO e está presente em todo o livro. Haja saco. Ele adiciona a isso aquela versãozinha que pretende que o Brasil de antes e o de agora são diferentes em termos de oportunidades para os "pobres". Cuméquié? Basta rodar por aí para constatar que continuamos todos na mesma merda, se não for pior.  Dizer que hoje "pobres" viajam de avião como se fosse resultado de alguma política nacional é uma babaquice. O turismo hoje é 20 vezes maior em todo o mundo. As classes de menor renda em todo o planeta Terra passaram a fazer turismo, como não faziam nos anos 90. A tecnologia e a internet comoditizaram o produto turismo e deu nisso, neguinho não senta o cu em casa no fim de semana. Se espertalhões e demagogos tentam capitalizar essa evolução em benefício próprio, problema dos "otários", usando ou não camisas da marca "X" ou "Y" (curioso também que o "pobre" Dinho critique as marcas, quando foram as camadas populares que criaram a expressão "camisa de marca", como objeto de fascínio e desejo). Outra é que ele adora falar de taxista, mesmo alegando ter sido sempre um fudido. Eu, que nunca morei na puta que o pariu e nunca fiquei sem comida em casa, conto nos dedos as vezes que peguei táxi na vida, coisa de rico. Sempre peguei ônibus ou fui à pé, até o dia que juntei para comprar meu primeiro fusquinha, que me exigiu um ano de trabalho como vendedor, sem tomar uma Coca-Cola sequer, só pra economizar. Assim comprei meu calhambeque azul (que me custou doze milhões e oitocentos mil cruzados, um ferro-velho que bebia óleo em vez de gasolina e que vendi por dezessete milhões umas três semanas depois). Pois é. Todo mundo rala. A casca de banana no caminho do Anderson é o rancor contra pessoas que tiveram socialmente um ponto de partida diferente do dele - adversários que hoje são seus leitores e entusiastas. Contraditório, não? Essa revolta empobrece sua literatura ("Santa Cruz", "Chronicles of a loser", "Inversão", "Aqueles 20 centavos" e outras) e chega a esvaziá-la quando ganha contornos panfletários, ao fazer apologia de Lula, Dilma e do governo petista. Mas essa bobajada pseudopolítica embaça, mas não apaga, as muitas qualidades do cara. Ler o Dinho é visitar um Brasil genuíno, que é dominante nas ruas e nas quebradas, mas não tem firma reconhecida. Não entendi patavinas foi a ameaça que ele sofreu por ocasião da FLIP, que neguinho queria abotoar ele num sei porquê. Googlei pra caraca e não achei desdobramento nenhum da parada, parece que, depois do oba-oba da denúncia, a sequência do que não houve caiu num buraco negro, ninguém matou, ninguém morreu e também ninguém se preocupou mais com isso. Antes assim.

Editora Objetiva, 116 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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