"O Voyeur", por Gay Talese

terça-feira, novembro 07, 2017 Sidney Puterman

Gay Talese é uma lenda da reportagem e tido como um dos fundadores do Novo Jornalismo, movimento de valorização do texto ocorrido no fim dos anos 60. Há quem o considere mais que "um dos fundadores" - e sim o seu verdadeiro inventor. Este que é seu livro mais recente parte de uma situação inusitada: Talese em 1980 recebeu a ligação de um sujeito dizendo que tinha um motel e que há mais de uma década espionava os próprios hóspedes. Seu motel tinha 21 quartos e ele construiu uma passarela no teto, onde observava os hóspedes por entradas de ventilação falsas. Mais: escrevia relatórios detalhados sobre cada hóspede que bisbilhotava. Para lhe dar a estória, exigia apenas que o escritor o mantivesse no anonimato. Talese não concordou. Só escrevia sobre pessoas reais e com nomes reais. Mas, ainda assim, de passagem por Denver, Gay foi ao encontro do motel e do seu dono. Conversaram, subiram no telhado e chegaram a espiar um casal. Talese foi embora e deixou a estória de lado. Trinta anos depois, Gerald Foos, o proprietário do Manor House Motel, o procurou novamente. Concordava em entregar seus relatórios e ter seu nome publicado, bem como tudo o mais: endereço, detalhes da própria familia, fotos etc. Em décadas de observação, que lhe consumia praticamente todo o tempo, Gerald, agachado, testemunhou sexo, mentiras e discussões - mas estes eram os melhores momentos. Em 90% do tempo, se restringia a vigiar monotonamente o que se passava nos quartos. Pessoas vendo televisão, pessoas dormindo, pessoas comendo. Um cachorro que fez suas necessidades no carpete e os hóspedes colocaram uma poltrona em cima; sucessivos sujeitos comendo fritura e limpando a mão na roupa de cama; um gordo na privada que caiu de cara no chão. Bizarrices sexuais ele viu às mancheias: um sujeito que mijava no drinque da mulher quando ela ia ao banheiro; uma falsa prostituta que, depois de receber a grana e deixar o cliente nu, saía para comprar uma Coca-Cola, item essencial para que ela molhasse a boca durante o que seria o "melhor boquete do mundo", e dava no pé; um pai de família fazendo sexo com um ursinho de pelúcia (imagine aí por sua conta); um casal de irmãos adolescentes que transavam assim que os pais saíam; o hóspede solitário que teve uma parada cardíaca tocando uma, e que a equipe que veio levá-lo para o caixão não conseguiu fazer desgrudar a mão do pinto. Não tenha dúvidas de que Foos, que se pretendia um observador profissional mais relevante do que aclamados estudiosos do comportamento sexual, era, apesar da auto-estima elevada, basicamente um tarado. A ponto de uma vez quase ser denunciado pelo próprio sêmen: assistia um casal fazendo um sexo irado e gozou, no sótão, ao mesmo tempo que o hóspede gozava, no quarto, masturbado pela sua parceira. Enquanto o cara ejaculava em esguichos de um metro e meio, Gerald gozou sobre o respiradouro, sem reparar, e a gosma começou a gotejar. O casal na cama estava ainda nos espasmos pós-sexo, quando o negão falou para a loura (era um casal interracial, novidade nos anos 60) que estava pingando esperma do teto. A loura hóspede subiu na cama, passou o dedo na substância, lambeu e vaticinou: "Isso tem o gosto da sua porra..." O voyeur-punheteiro respirou aliviado pela conclusão errada da dona, em uma das poucas vezes em que correu o risco de ser descoberto. Fora estes momentos de pornochanchada (tem ainda o cara que se fantasiava de cabra e ficava fazendo meeééé pelo quarto), o livro é mais sobre Foos do que sobre espionar pessoas. Ainda que descrevendo as passagens cômicas e eróticas, enfatiza que o tédio era dominante na atividade do voyeur. Para quebrá-lo, chegava a inventar situações, como um "teste de honestidade", em que simulava uma hóspede ter esquecido uma maleta com US$ 1,000.00 dólares em um quarto específico, e no tal teste submeteu padres, médicos e militares à tentação de devolver a mala intacta (e vazia, como descobriram todos que a arrombaram). Houve uma vez em que as intervenções do dono do motel criaram uma tragédia, quando Gerald Foos foi determinante para o resultado final: um assassinato, que o voyeur provocou e testemunhou. Porém, mais não digo, porque já forneci uma quantidade mais do que suficiente de spoilers. No fim do livro, de lambuja, ainda temos uma estupenda entrevista com o autor, "Gay Talese e a arte da não ficção n. 2", escrita por Katie Roiphe e publicada na edição 189 da revista Paris Review. De tão reveladora, achei até mais divertida do que o livro, que não está entre os seus melhores (ele chegou a renegá-lo temporariamente à época do lançamento, após descobrir que Foos omitiu circunstâncias que atentavam contra a credibilidade da obra; mas depois reconsiderou o que disse, afirmando que apenas se sentiu traído). Cereja do bolo, Talese comenta o making of dos livros que fizeram a sua fama. E nos permite entender porque este vaidoso ex-office boy do New York Times tem um pedestal só para ele na história do jornalismo.

Companhia das Letras, série Jornalismo Literário, 270 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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