"A face sombria da beleza", por François Forestier

segunda-feira, junho 27, 2016 Sidney Puterman

Uma coisa fica clara logo nas primeiras páginas: o livro sobre Marlon Brando é uma biografia onde o biógrafo não gosta do biografado. Geralmente o que temos nas bios é uma propensão à hagiografia, onde o fã (ou o autor por encomenda) derrama loas sobre o biografado em questão. Aqui é escancaradamente o oposto. Tanto que, já no prefácio, se depreende que, independentemente de improváveis qualidades do tal Marlon Brando, ele terá chance zero. Sem misericórdia. Mas por quais cargas dágua eu me meti a ler a história (já caduca) deste ator meio mítico, meio enfant terrible; meio genial, meio maldito? Bem, eu ainda peguei a raspa do tacho da lenda. Para mim, Marlon Brando era um ator com uma aura de divindade cênica - daí minha curiosidade. Mas o fato é que mal vi o sujeito atuar (e, o que vi, me pareceu um monte de caras e bocas, um canastrão metido a Rasputin). O que assisti dele? Além do celebrado Don Corleone de "O Poderoso Chefão", houve também o cinquentão depravado que amanteigava Maria Schneider no "Último Tango em Paris" (que, moleque, acompanhei a repercussão, mas que aqui foi proibido), o coronel alucinado de "Appocalypse Now" e o ridículo papel de pai do Super Homem. Mais que tudo, porém, me encantavam as cenas em preto e branco de "Sindicato de Ladrões". Havia um certo magnetismo nele e no filme. Provável que daí viesse meu interesse. Mas, assim comecei a leitura, encafifei com a retórica maledicente. O autor espinafra o biografado. Não é que ele não goste. Ele odeia. Mas não é só isso. O estilo do autor é incômodo. Diz o que quer, infere o que pensa, sonega o demais. E, no que escolhe contar, só revela uma fração da cena. Escreve de esguelha, como quem, escorado numa pilastra, vê um imbroglio do outro lado da rua, mas sem som, como um filme mudo. Forestier excreta sua biografia e ela se esparrama aos vômitos. Um jorro ácido. O autor é permanentemente mordaz. Monotemático: seja o que acontecer, seu único assunto é o mau-caratismo de Marlon Brando. Algum mal, algum dia, Brando deve ter feito ao escritor. A primeira metade da biografia é rabiscada nas coxas, com parágrafos atropelados à guisa de reconstituição de trajetória, com a profundidade de um tablóide sensacionalista. Embora em nenhum instante Forestier explicite, para ele Brando é um filho da puta. Na verdade, literalmente ele quase o diz, narrando as infidelidades da mãe bêbada do astro. Sobre Marlon pai, diz que é um picareta fracassado. Voltando ao próprio, o biógrafo diz que o artista é preguiçoso, debochado, traiçoeiro, covarde e viado. Picota a filmografia de Brando e faz da obra um prontuário sexual. Que dormiu com todas e que sacaneou todas com quem dormiu. Pior: que chupava pau (há na internet uma foto do ator pagando um boquete... nos anos 50!). Arregaça com toda a prole do artista, incluindo as esposas. O Marlon Brando que ele resenha é deplorável. A segunda metade do livro talvez seja melhor. Ou talvez eu tenha me acostumado com o sarcasmo e a ininterrupta má vontade do autor. Mas mesmo uma hipotética recuperação da qualidade do texto seria insuficiente para resgatar o livro do limbo literário. Por outro lado, fez com que eu ficasse com a convicção de que Marlon Brando era, acima de tudo, um babaca. Se o autor queria me influenciar, conseguiu.

Editora Objetiva, 196 páginas

Post scriptum: Li o livro vagueando em Nova York (achei apropriado lê-lo nas bandas do Actors Studio). Acima, nós dois, na HighLine, no Meatpacking, pegando o solzinho nova-iorquino de outubro. Irado.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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