"Recados da bola", por Jorge Vasconcellos

segunda-feira, fevereiro 15, 2016 Sidney Puterman

Lembra de toda a celebração, aqui, no "País do Futebol", quando o futebol brasileiro completou 100 anos? Lembra dos eventos e das extensas reportagens, que remontaram às origens do esporte bretão por estas plagas? Não, aposto que você não lembra. Também, não tinha como. Aqui não houve festa. A data foi solenemente ignorada. Mas, bem longe daqui, na rádio BBC de Londres, naquela ilha fria e chuvosa onde inventaram o futebol, o pessoal não achou que a data devia passar em branco. Tanto que contrataram jornalistas brazucas para produzir a série "Brasil: um século de futebol (1894-1994)", composta dos depoimentos, gravados, de um monte de foras-de-série que estiveram dentro de campo e fora dele. Bacana. Trabalho feito, nossos profissionais da imprensa mandaram as fitas pros ingleses e, sabiamente (e com todo o direito), arquivaram o material coletado. Dez anos depois, em 2004, um dos jornalistas, Jorge Vasconcellos, publicou alguns daqueles depoimentos - meros oito, entre os trinta obtidos, mas os mais relevantes entre eles. Eram os de Domingos da Guia, Jair Rosa Pinto, Zizinho, Barbosa, Ademir Menezes, Didi, Bellini e Rivelino. Entusiasmado com a repercussão, voltou às ruas para novas conversas com craques do passado, acrescentando ao time os bicampeões do mundo Nilton Santos, Zito e Djalma Santos, e mais o dr. Sócrates, um craque de exceção. O resultado final constitui obra ímpar, reunindo a legitimidade e a falta de pompa do discurso oral (revelando o pensamento e a personalidade de grandes artistas da bola), alinhavados em uma edição soberba, com apenas 5.000 exemplares. Sou um dos sortudos. O cuidado editorial da Cosac Naify - que recentemente fechou as portas, após duas décadas de excelência gráfica - valorizou as excepcionais imagens de uma época em que o futebol brasileiro era o melhor do mundo. Pela programação visual e pela pertinência, é peça de colecionador. Não tenha dúvida de que só as fotos já valem o livro - mas, mesmo assim, o conteúdo não fica atrás. O trabalho delicado de Jorge Vasconcellos preservou parcela importante da memória do futebol brasileiro, resgatando uma época em que a cobertura esportiva se restringia aos jogos nos estádios, com escasso registro visual. Assim, reunir a fina flor da inteligentsia dos gramados é um presente e tanto para quem é apaixonado pelo relato de quem fez parte da história. Novidades? Poucas. Mas uma leitura sempre saborosa. Os entrevistados reafirmaram a veracidade de fatos já conhecidos e vazaram também estórias e ângulos pouco ou sequer sabidos. Barbosa conta que durante a Copa de 50, no Joá, ficavam tranquilos até que chegasse o encarregado com a senha: "Vamos descer para liquidar esses gringos e voltar". Domingos da Guia celebra Leônidas da Silva e a bicicleta (que julgava perigosa para a cabeça dele, zagueiro), mas elege Friedenreich o melhor que viu jogar. Rejeita qualquer influência sobre a qualidade do filho, Ademir da Guia ("não lhe ensinei nada"), e agradece o nome com que foi batizado: "Meu nome, Domingos, me ajudou muito. Eu jogava sempre no meu dia." Jair Rosa Pinto foi extremamente elogiado pelos craques entrevistados (diziam que Jair batia forte e colocava a bola onde queria) e, no seu depoimento, deixou claro como se portava: "No meu tempo, técnico não mandava nada." Aconselhou um Pelé de 16 anos, na primeira partida: "O futebol aqui é violento, quando for disputar a bola com o beque, pega ele primeiro." Jogou até os 43 anos e tinha uma receita sui-generis para a longevidade: "Depois dos jogos, ficava meia hora na banheira com sal, tomava uma canja de galinha, fumava um cigarro e dormia." Zizinho valorizava o passe: "Nunca dei valor ao gol. Meu prazer era dar o último passe e deixar o companheiro na cara do goleiro, pra meter a bola e vir abraçar a gente. Hoje o cara sai correndo na direção da torcida, mas devia agradecer o amigo que deu o passe. O público não tem nada com isso." Mestre Ziza rebate uma frase mais que repetida: "Dizem que os jogadores de antigamente não teriam lugar no futebol de hoje. Eu não ligo. Não converso com quem não sabe nada de futebol." O ídolo vascaíno Ademir Menezes lembrou de Heleno de Freitas: "Grande jogador, mas muito nervoso. Boa pinta, branco, alto, advogado, mas xingava muito. Por conta da sífilis, acabou louco." Ademir, o Queixada, fala da final de 50: "Quando o Uruguai fez 2x1, a torcida emudeceu. O silêncio pesou sobre mim e eu queria ficar parado. Só o Zizinho e o Augusto reagiram." Djalma Santos - cujo nome verdadeiro era Dejalma dos Santos -, que entrou na final da Copa de 1958 e acabou eleito o melhor lateral-direito da Copa, diz que o Dida, ídolo do Flamengo, se intimidava - por isso, na opinião dele, o guri Pelé era mais indicado para ser titular em 58: "Dida era bom jogador, mas baixava a cabeça. O Pelé você ameaçava quebrar a perna dele e ele respondia na lata que, se quebrasse a dele, ele ia quebrar as suas duas." Djalma não esconde que chamou a atenção de Didi, na Copa de 62, porque contra a Espanha o botafoguense queria se vingar do boicote que sofrera no Real Madrid - mas ressalva que o próprio Didi, ao lado de Zito e Bellini, foi o grande líder da Seleção. Djalma faz coro com os que criticam a desorganização brasileira na Copa de 1966, a última em que participou, acusando João Havelange e sua campanha pela FIFA como principais responsáveis pela derrota. Critica também o técnico Zagalo da Copa de 1998, por insistir em colocar um Ronaldo sem condições físicas para jogar a final. Zito jogou ao lado daqueles que talvez sejam os dois maiores jogadores brasileiros de todos os tempos: Zizinho e Pelé. Na opinião do meio-campista da Seleção das Copas de 58 e 62, "Pelé tinha um ímpeto semelhante ao de Zizinho, que era para o Brasil o que Labruna era para a Argentina, o maior mito argentino até o aparecimento do Maradona. O Zizinho não era um lançador, era um jogador que fazia gols, de condução de bola e dribles bonitos." Enfatiza ainda que "todos nós admirávamos o futebol argentino, na época o melhor futebol da América." Didi, além do relato pessoal de quem liderou o escrete brasileiro em duas Copas, revela o segredo que fez sua fama nas cobranças de falta: "A folha seca é jeito muito difícil de bater na bola, tem que cortar a bola no meio, fazendo muita força com a ponta dos dedos. Usava a chuteira bem justa, um número menor, para, com a pontinha dos dedos, com a unha mesmo, cortar a bola." Didi teve tal importância para o futebol brasileiro que, mesmo depois de Pelé e Garrincha terem surgido, a imprensa tinha o maestro do Botafogo e da Seleção Brasileira na conta de Rei do Futebol (no destaque, o detalhe de uma autêntica "fotonovela", feita à época em que o craque era assediado por clubes da Europa). Já o depoimento de Bellini traz desconforto quando ele revela que "mesmo nas peladas de rua, gostava de cabecear, os mais velhos elogiavam meu cabeceio, a forma de golpear a bola de olhos abertos". Os sucessivos traumas cranianos foram a causa mortis do jogador. Hilderaldo Luiz Bellini é o capitão campeão do mundo que, cansado, ao erguer com as duas mãos a Taça Jules Rimet, em 1958, para que os fotógrafos que estavam mais atrás pudessem fotografá-la e ele pudesse sentir menos o peso do troféu, criou um símbolo imortal: o capitão campeão do mundo erguendo a taça sobre a cabeça. A partir daí, todos repetiram o gesto. Virando a página, a foto de Nílton Santos, a "Enciclopédia do Futebol", com toalhas enroladas na cabeça e no corpo como se fosse um tuaregue, é impagável. O jogador se gaba de ter disputado 26 finais ao longo da sua carreira - e ter ganho todas. Tem mais é que se gabar (lembrando que duas delas foram finais de Copa do Mundo). Não perdoa o técnico da Seleção de 50, Flávio Costa, que o barrou, na Copa perdida para o Uruguai, porque exigia que ele jogasse com chuteira de bico duro, dizendo que "jogador de defesa de time dele não usava chuteira de bico mole, se não como fazia na hora do bico?" Nílton Santos, ainda em início de carreira, ao ser repreendido por Flávio, no vestiário da Seleção, contestou: "Não tenho raiva da bola, ela sempre me obedece. E eu que sei o que é bom pra mim, porque quem chuta sou eu." Ao mesmo tempo em que o lateral arrancou gargalhadas do resto do time, perdeu definitivamente a posição. "A derrota na Copa de 50 tem nome: Flávio Costa. Dizer que o time uruguaio era melhor que o nosso é bobagem. Ganhamos o Pan-Americano de 52 e batemos o mesmo Uruguai por 4x2." Nílton nunca esqueceu a perda. "Quando ganhamos em 1958 e depois ganhamos em 1962, eu já com 38 anos, dediquei o bicampeonato a quatro caras: Danilo, Zizinho, Jair Rosa Pinto e Barbosa." O craque, que estreou pelo Botafogo em 1948 (e foi campeão) e disputou quatro Copas do Mundo, se considera um predestinado: "Entrei no futebol com o pé direito. Fui bicampeão mundial e, de 48 a 64, só vesti a camisa de um clube: o Botafogo." Rivellino (que ganhou mais um "l" no nome, depois de aposentado), tido como o maior craque da história do Fluminense, onde jogou na segunda metade dos anos 70 , confessa ter tido uma passagem "maravilhosa" pelo tricolor, mas não deixa dúvida quanto à sua condição de corintiano: "O Corinthians foi tudo para mim. Eu adoro o Corinthians!" Um capítulo à parte é a entrevista com Sócrates, craque também corintiano, que nos deixou antes da hora. Médico e atleta, paradoxalmente morreu vítima do excesso de álcool. Uma perda precoce. Embora tenha sido autor de jogadas geniais - a maior parte delas utilizando o calcanhar (recurso que justifica pela pouca condição física, dizendo que "minha sobrevivência dependia do desenvolvimento de uma técnica alternativa, comecei a jogar dando um toque só na bola, para evitar o contato físico, porque eu era muito magro"), se destacou mais pelo que fazia e dizia fora do campo.  É que, nos gramados, nunca nos faltaram os gênios; mas nossos atletas sempre foram pobres de discurso. Evidentemente, este não era o caso do dr. Sócrates. Comumente chamado simplesmente de "Doutor", ocupou um espaço antes não ocupado por nenhum outro jogador, com um discurso politizado em uma linha que costumamos denominar de "esquerda". Ele ressalta que "o ambiente de ditadura militar potencializou o processo, você tem um cara num meio popular pregando uma coisa que é contra a realidade política do país, e eu era um porta-voz talvez maior que qualquer outro". Se orgulha das posições que mantinha abertamente contra a Globo, se recusando a conceder entrevistas: "um confronto entre um indivíduo que tem um monte de opiniões contra o maior poder do país." Sócrates foi o líder da "Democracia Corintiana", uma badalada experiência no ambiente interno do clube, ação altamente paparicada pela mídia, onde todos votavam se o suco ia ser de laranja ou de maracujá, ou em que posto de estrada o ônibus ia parar na volta do Guarujá. Por sua vez, o celebrado Doutor entende que aquele foi um movimento político. Na verdade, me pareceu bem mais uma grande exploração midiática, exponenciada pelo oportuno nome pespegado pelo Olivetto, o (ótimo) marqueteiro do grupo. Sócrates superestima o que aconteceu: "Todas as forças conservadoras ou reacionárias queriam nos derrubar. Do outro lado, estavam as forças progressistas. O desfecho do que criamos acontece com a votação no Congresso da emenda das Diretas já." Falando de futebol, que é o que mais vale, Sócrates foi um dos destaques da Seleção na Copa de 82, cuja eliminação considera "o seu maior trauma e sua maior lição". Sobre a Copa de 86, em que perdeu um pênalti e acabamos eliminados pela França, não aceita ser recriminado pela perda: "No pênalti, os critérios de avaliação são muito subjetivos. Se eu for levantar da cama e for bater pênalti, faço 99 e erro um." Mas em seguida reflete e faz um mea culpa: "Na verdade, aprendi a bater pênalti no último ano de carreira. Três anos depois de parar ainda estava desenvolvendo algumas técnicas. Só existe uma situação ideal - você toma a menor distância possível da bola, mantém o goleiro parado e acerta no canto. Na Copa de 86 eu usava uma técnica onde ameaçava chutar e esperava o goleiro definir o canto, porque em geral os goleiros pulam antes de você bater. O goleiro francês não escolheu nenhum, aí eu joguei no meio de um lado e o goleiro pegou." Voltando aos temas da nação, Sócrates é definitivo sobre a importância do esporte: "Nada é mais barato como educação do que o esporte, e nada mais político neste país do que o futebol." Vai com Deus, Doutor. Fecho de brilho para uma edição de classe.

Cosac Naify, 240 páginas


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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