"A espécie humana", por Robert Antelme
Hoje, 8 de maio, é um dia especial. Faz 70 anos da vitória aliada na Segunda Grande Guerra. Data importante, redonda, perfeita para a celebração dos grandes heróis. Assim, se impõe que falemos dos estrategistas e dos generais. Da capitulação alemã. Da indomabilidade russa. Da determinação inglesa. Da exuberância norte-americana. (Ou dos nossos intrépidos pracinhas). São ângulos apaixonantes sobre o evento máximo, que criou a posteridade em que habitamos. Só que não. Hoje me dou a falar de um livro que conta um pedacinho da guerra. Mínimo. Esquecido. Um livro que fala de um pedaço só e que, paradoxalmente, revela sobre o mundo inteiro ("não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti", já escreveu John Donne). É um livro sombrio. Dolorido. Desesperançado. É o relato de um jovem jornalista francês dos anos 40. Que aderiu à Resistência para combater o nazismo na França ocupada, caiu preso e foi mandado para um campo de concentração no interior da Alemanha. Ele narra a fome, o frio e as privações que eram o seu cotidiano e o de centenas de prisioneiros. Além do sofrimento provocado pelos SS e pelos capos, somada à indiferença e ao desprezo dos civis alemães, ele disseca a mesquinhez, a rivalidade e a falta de escrúpulos entre os presos, reduzidos ao mais baixo patamar moral. Sempre famintos, tinham por único objetivo comer e roubar comida. A princípio estranhei seu estilo narrativo, em uma toada poético-filosófica, que abusa das descrições fechadas. Opta por uma dissertação claustrofóbica. Seu texto me incomodava, não me permitia a noção do todo: hora nenhuma nos é dito qual campo, em qual cidade, qual o tamanho, qual o efetivo da vigilância - não. Mas fui me acostumando. Antelme zanzava, se esquivava, escarafunchava, se escondia - e nos levava juntos. Nos impõe ver o pouco que ele vê, ou ainda menos. Fala sobretudo das relações "humanas" entre presos, guardas, civis e os responsáveis pela supervisão dos blocos, presos privilegiados - que comiam, riam e batiam. À medida em que o livro avança, essa exígua visão do universo nos transfere para dentro dos olhos do autor. Passei a ver o que ele via. Sua descrição me encolhia. Súbito, sinto o que ele sente. Acabo hipnotizado pela sua reportagem taquigráfica e de esguelha, pelo seu sofrimento já despido de pudor, pelo lento desfazimento da humanidade, que escoava e se acabava - nele e nos seus companheiros de infortúnio. Ao fim, presos também, nos deparamos com a constatação da impossibilidade de destituir o homem de sua condição visceral: a de pertencer ao mesmo gênero humano ao qual pertence seu eventual senhor. Mesmo em situações opostas, são ridiculamente iguais. É essa "espécie humana" que Antelme celebra - e deplora. E nós, circunstancialmente leitores, não diferimos dessa massa instável de opressores e oprimidos. Somos, todos nós, ao fim e ao cabo, o mesmo triste ser humano. Na contracapa, Maurice Blanchot comenta: "Ao ler um livro como este, começamos a entender que o homem é indestrutível, e mesmo assim pode ser destruído." Paradoxos. O conciso e contundente texto de Robert Antelme termina sem conclusões, sem moralismos, sem expectativas nobres ou discursos de superação. Nada foi nobre. Nada foi moral. Nada foi superado.
Record, 335 páginas
0 comentários: