"A espécie humana", por Robert Antelme

sexta-feira, maio 08, 2015 Sidney Puterman

Hoje, 8 de maio, é um dia especial. Faz 70 anos da vitória aliada na Segunda Grande Guerra. Data importante, redonda, perfeita para a celebração dos grandes heróis. Assim, se impõe que falemos dos estrategistas e dos generais. Da capitulação alemã. Da indomabilidade russa. Da determinação inglesa. Da exuberância norte-americana. (Ou dos nossos intrépidos pracinhas). São ângulos apaixonantes sobre o evento máximo, que criou a posteridade em que habitamos. Só que não. Hoje me dou a falar de um livro que conta um pedacinho da guerra. Mínimo. Esquecido. Um livro que fala de um pedaço só e que, paradoxalmente, revela sobre o mundo inteiro ("não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti", já escreveu John Donne). É um livro sombrio. Dolorido. Desesperançado. É o relato de um jovem jornalista francês dos anos 40. Que aderiu à Resistência para combater o nazismo na França ocupada, caiu preso e foi mandado para um campo de concentração no interior da Alemanha. Ele narra a fome, o frio e as privações que eram o seu cotidiano e o de centenas de prisioneiros. Além do sofrimento provocado pelos SS e pelos capos, somada à indiferença e ao desprezo dos civis alemães, ele disseca a mesquinhez, a rivalidade e a falta de escrúpulos entre os presos, reduzidos ao mais baixo patamar moral. Sempre famintos, tinham por único objetivo comer e roubar comida. A princípio estranhei seu estilo narrativo, em uma toada poético-filosófica, que abusa das descrições fechadas. Opta por uma dissertação claustrofóbica. Seu texto me incomodava, não me permitia a noção do todo: hora nenhuma nos é dito qual campo, em qual cidade, qual o tamanho, qual o efetivo da vigilância - não. Mas fui me acostumando. Antelme zanzava, se esquivava, escarafunchava, se escondia - e nos levava juntos. Nos impõe ver o pouco que ele vê, ou ainda menos. Fala sobretudo das relações "humanas" entre presos, guardas, civis e os responsáveis pela supervisão dos blocos, presos privilegiados - que comiam, riam e batiam. À medida em que o livro avança, essa exígua visão do universo nos transfere para dentro dos olhos do autor. Passei a ver o que ele via. Sua descrição me encolhia. Súbito, sinto o que ele sente. Acabo hipnotizado pela sua reportagem taquigráfica e de esguelha, pelo seu sofrimento já despido de pudor, pelo lento desfazimento da humanidade, que escoava e se acabava - nele e nos seus companheiros de infortúnio. Ao fim, presos também, nos deparamos com a constatação da impossibilidade de destituir o homem de sua condição visceral: a de pertencer ao mesmo gênero humano ao qual pertence seu eventual senhor. Mesmo em situações opostas, são ridiculamente iguais. É essa "espécie humana" que Antelme celebra - e deplora. E nós, circunstancialmente leitores, não diferimos dessa massa instável de opressores e oprimidos. Somos, todos nós, ao fim e ao cabo, o mesmo triste ser humano. Na contracapa, Maurice Blanchot comenta: "Ao ler um livro como este, começamos a entender que o homem é indestrutível, e mesmo assim pode ser destruído." Paradoxos. O conciso e contundente texto de Robert Antelme termina sem conclusões, sem moralismos, sem expectativas nobres ou discursos de superação. Nada foi nobre. Nada foi moral. Nada foi superado.

Record, 335 páginas


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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