"Maracanazo", por Atilio Garrido

quinta-feira, junho 12, 2014 Sidney Puterman

Há uma data maldita na História do Brasil. Não é 31 de março de 1964. Nem 21 de abril de 1792. Foi entre ambas, há exatos 23.342 dias. 16 de julho de 1950. No dia em que o Brasil perdeu a Copa de 50 dentro do Maracanã. Uma tarde ingrata que deixou um sulco na auto-estima do País - e foi, por outro lado, véspera de uma sucessão de conquistas que fizeram do Brasil o País do Futebol. Agora, depois de 64 anos desse dia infeliz, a hoje mítica Seleção Brasileira pisa novamente em solo pátrio em jogo valendo pela Copa do Mundo. Diferentemente da última vez, nessa o Brasil não é o favorito absoluto, apesar de toda a história recente. Como dizem os intelectuais, "futebol é momento". No hiato de 1950 a 2014, mudaram os tempos. Mudou o futebol, mudou a Copa. A Inglaterra de outrora não é mais o bicho-papão, o aguerrido Uruguai manteve-se contido em sua própria pequenez e a Copa tornou-se um evento planetário. Nesse mundo tão maior, porém, os ecos do passado ainda ressoam. Vêm junto com o vento que sopra do Sul. E assobiam sua ladainha. Vi na TV o pequenino periodista uruguaio, Atilio Garrido, vendendo seu peixe colossal - uma autêntica baleia jubarte - em um programa esportivo, defendendo com unhas e dentes a tese de que o time brasileiro de 50 não merecia o favoritismo que lhe era então atribuído. Mesmo sendo um ponto de vista que tem seu apelo, o livro que escreveu para legitimar sua teoria, lançado ano passado em Montevideo, é a verdadeira cumbia do criollo borracho. Seu "Maracanazo, a história secreta", é baseado em depoimentos requentados dos personagens do jogo e em toneladas de jornais velhos. Oportunista, Atilio viu na perspectiva da Copa disputada novamente no Brasil uma chance de faturar uns cobres, e catou velharias no porão para repaginar uma pauta recorrente - e mesmo no Uruguai não ganhou muita repercussão. No Brasil, pior, não achou quem o editasse, e, para viabilizar o negócio, pagou pela impressão e vem tentando faturar algum aparecendo onde lhe permitem. Divulgou onde pôde seu pechisbeque cartapácio (o corporativismo dos jornalistas não nega espaço para "colegas" e Garrido deu plantão em todos os canais que conseguiu, sorridente) e levou os incautos, como eu, a comprar a baboseira. O mote do livro, em si, não é de todo jejuno. Fala do arcabouço político que manipulava o esporte como estratégia de afirmação do poder em vigor, na Europa, que o Brasil getulista importou por ferramenta. Vargas queria a Copa de 42, e, ante a guerra, adiou seus planos. Mussolini enforcado, Hitler suicidado e Japão rendido, voltou-se o país para organizar a Copa de 1949 - que acabou sendo em outro governo, o de Dutra, e em outro ano, que bem sabemos. Se estende ainda Garrido (que na orelha do seu livro aparece em um retrato típico de primeira comunhão, de terno escuro, camisa azul e gravata riscada, com uma engraçada boca entreaberta) sobre a história dos confrontos entre uruguaios e brasileiros, que, então, somavam 30 jogos, com 13 vitórias nossas, 11 deles e 6 empates. Redundante, discorre com irritante detalhismo sobre cada personagem terciário e cada evento adjacente (pára o livro para discutir a real data de aniversário do sobrinho de um jogador uruguaio da década de 20), enquanto sua massacrante reprodução dos jornais da época faz do texto anacrônico e rococó. Se soma a tudo isso o fato de que Garrido é abusivamente tendencioso. Descreve a história do futebol uruguaio como uma epopéia composta exclusivamente de vitórias heróicas - onde, sempre que derrotado, fôra prejudicado pela arbitragem, pela violência (!), pelo azar ou pelo cansaço. Com a óbvia distorção dos fatos, leva ao descrédito a história que narra. E, da mesma forma que nós brasileiros cremos piamente que Santos Dumont inventou o avião, os uruguaios se auto-intitulam tetracampeões mundiais (24-28-30-50). É uma megalomania autista. Sob sua ótica caolha, a grande força era o Uruguai, e sua "missão" é corrigir o erro histórico que desviou para o país-sede o favoritismo que caberia à Celeste. Entretanto, para se tornar minimamente crível, faltou ter corrigido a si mesmo. Devido às centenas (isso mesmo, você não leu errado) de erros na obra do pequeno uruguaio, o livro é um chiste. Jamais tive em mãos um livro com tal profusão de equívocos, sejam factuais, de nexo, revisão ou tradução. Não foram poucas as vezes em que encontrei mais de 10 erros em uma única página. Seu conteúdo desinforma os leitores: Heleno de Freitas teria surgido no Vasco, em 1949, e se desentendia com os colegas porque ia se graduar como advogado (não: Heleno surgiu na década de 30, no Botafogo, e se indispunha com todos devido ao seu quadro patológico, que redundou em sua morte em um hospício, demente); o Brasil tentava o bicampeonato mundial em 50 (passo); Ademir Menezes foi revelado no Sport Clube da Bahia (veio diretamente do Recife); o bairro de Laranjeiras, no Rio, era repleto de casarões no século XVII (só seriam construídos 200 anos depois);  Tesourinha era zagueiro do Internacional (é o mais famoso ponta-direita da história do clube);  a TV em 1950 ainda não existia (ela foi inventada em 1939); uma viagem Rio-São Paulo, de trem, durava 15 horas em 1950 etc. Somam-se aos erros de apuração os intermináveis erros de ortografia, que, utilizando alguns dos encontrados desde o prefácio, nos permite criar divertidos parágrafos: "Na finalsíssima em Petropolits, o massajista dos jugadores ascendeu a própia lanterna, cubriu o jugador e fez o concerto do cronometista incaico, que pousava para a fotografia bringando com os fusis, uma locura que crecia, como disse a impensa brasielria." É constrangedor que um jornalista profissional edite uma atrocidade dessas. Porém, o que acima de tudo nos agride é a defesa longa e canhestra da sua tese, de que o epíteto de "zebra" outorgado à Celeste em 50 era indevido e que até hoje isso não foi aclarado. Assim, na ânsia de provar sua crença, distorce os relatos e desaba no ridículo, invertendo a percepção: os atletas campeões em 50 acabam tendo seu vulto diminuído após a leitura de "Maracanazo". Sua obsessão em atribuir a cada mínimo detalhe uma parcela de responsabilidade pela vitória cisplatina dilui a grande batalha com que se eternizou o confronto. A lenda é substituída pela fatalidade de um conjunto de circunstâncias, que favoreceu os uruguaios e prejudicou os brasileiros. Não há tapa em Bigode. Não há falha mortal de Barbosa. Não houve um fato. Houve mil. E o resultado deles foi um jogo de futebol que não acabou bem para nós. Para mim, brasileiro nascido após essa desgraça popular, desnudar essa epopéia foi uma catarse. Garrido tentou me empurrar para uma direção e me levou à outra. Ele acaba por fazer uma defesa da grandiosidade da Seleção Brasileira de 50. O que vemos é um time que se preparou para vencer o Mundial - o Brasil -, que teve um início um tanto claudicante (quando, após a vitória de 4x0 sobre o México, empatou em 2x2 com a Suiça e bateu a Iugoslávia por 2x0, com um jogador a mais) e que disputou um quadrangular final sendo avassalador nos dois primeiros jogos (7x1 na Suécia e 6x1 na Espanha). Enquanto isso, o Uruguai, que se preparou mal e se classificou nas eliminatórias sem disputar um único jogo - consequência da recusa em participar dos oponentes Peru e Equador -, teve uma fase inicial com mais duas desistências (Portugal, França e Escócia desistiram de vir à Copa, dois dos quais comporiam o grupo uruguaio), onde seu único oponente foi a baba boliviana (Uruguai 8x0) e, no quadrangular final, seus dois jogos foram dificílimos 2x2 com a Espanha e 3x2 na Suécia, adversários que o Brasil goleou tranquilamente. Com isso, o Brasil foi para o último jogo com a opção do empate e jogando em casa - lhe sendo atribuído um favoritismo acachapante, o tal que Garrido contesta e motivou seu livro. Seus principais e frágeis argumentos são os títulos uruguaios da - já naquela época - nostálgica década de 20 e, a sessenta dias da Copa, um revés brasileiro em campos paulistas, um Uruguai 4x3 Brasil (na semana seguinte o Brasil bateu os mesmos uruguaios por duas vezes). É uma defesa prolixa e sem fundamento, cacarejada por um falastrão ensandecido, que arrota vantagem e tropeça no be-a-bá. O Uruguai não merecia ver sua brava conquista tripudiada por esse mulambo editorial.

Editora Livros Ilimitados, 375 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: