"Futebol ao sol e à sombra", por Eduardo Galeano
Não se pode fazer uma tier list dos livros sobre futebol sem a inclusão desta concisa, mas enciclopédica, obra do escritor uruguaio Eduardo Galeano.
Muito mais do que uma protocolar e impessoal viagem pelo tempo, ele registra com paixão os principais feitos do futebol sul-americano - e, de lambuja, os mundiais. Ainda que mais para hincha do que para historiador, sua prosa cobre mais de um século de de futebol. Por ele no pása nada.
Lógico que, sendo de onde é, a mística charrua fala mais alto - ou seja, o futebol uruguaio e argentino estão em primeiro plano. Mas não há favor algum nessa ênfase - a Celeste é Olímpica por merecimento. Ganhou a medalha de ouro nas Olimpíadas de 1924 e 1928. E, mais, o mesmo time bicampeão olímpico se sagrou o primeiro campeão mundial, batendo a própria Argentina.
No Estádio Centenário, em Montevidéu, em 1930. Aliás, o mítico estádio da foto aí de cima.
Mas, se o livro fala muito de uruguaios e argentinos, fora de dúvida que quem divide o pódio com os hermanos são os brasileiros. Galeano adora o talento. Reverencia os craques brasileiros que viu jogar.
Dói, entretanto, que o primeiro grande espaço que ele conceda ao Brasil seja o da Copa arrancada a fórceps por Obdulio em pleno Maracanã. Para quem é da minha geração, 1950 ainda machuca. Mesmo tendo nascido muito depois da derrota humilhante, eu cresci escutando seus ecos.
Na minha infância, todo jogo Brasil x Uruguai despertava a ladainha do Maracanazo.
"O Brasil e o Uruguai disputavam a final no Maracanã. O Brasil era uma barbada. A final era uma festa", inicia o autor, destacando que todos já davam a vitória brasileira como favas contadas. "As primeiras páginas dos jornais já estavam impressas, já tinham vendido meio milhão de camisetas com grandes letreiros que comemoravam a vitória inevitável".
Pois é. Ele não está errado. Por tudo que li e ouvi, foi exatamente assim e ainda pior.
"Quando houve o gol de Ghiggia, explodiu o silêncio no Maracanã, o mais estrepitoso silêncio da história do futebol", diz. "Os comentaristas brasileiros definiram a derrota como a pior tragédia da história do Brasil".
Galeano conta como o próprio Jules Rimet perambulou pelo gramado: "Fiquei sozinho, com a taça em meus braços e sem saber o que fazer. Acabei por descobrir o capitão uruguaio, Obdulio Varela, e a entreguei quase às escondidas. Apertei-lhe a mão sem dizer uma palavra".
Galeano conta que era um pibe e escutou o jogo pelo rádio - no um a zero, fez mil promessas (jamais cumpridas) para que a Celeste virasse o jogo.
"A vitória do Uruguai diante da maior multidão jamais reunida numa partida de futebol tinha sido sem dúvida um milagre", afirma. "Mas o milagre foi acima de tudo obra de um mortal de carne e osso chamado Obdulio Varela".
Obdulio, depois do jogo, passou a noite sozinho, zanzando pelos bares do Rio, observando, taciturno, a tristeza que provocara. Na volta, ganhou um qualquer do governo uruguaio. O bicho extra teve vida curta. "Deu para comprar um Ford modelo 1931, que foi roubado naquela mesma semana".
O escritor rabisca um tratado antropológico do futebol. Além dos mais badalados Obdulio, Zamora, Scarone, Nasazzi, nos apresenta Atílio, Schiaffino, Arispe, Petrone, Andrade - segundo Galeano, o primeiro negro que a Europa viu jogar bola. Venceu a Olimpíada de 1924. "Foi negro, sul-americano e pobre, o primeiro ídolo internacional do futebol", afirma.
São muitos os nomes. E, em meio a todos, os vivos e os mortos, certamente o jogador mais citado é o brasileiro Garrincha. O autor contempla muitos outros craques do Brasil - Friedenreich, Domingos da Guia, Leônidas da Silva, Zizinho, Didi - porém, somados, foram menos citados que Mané.
Se derrama em elogios a Leônidas, mas nega a ele a invenção da bicicleta. Segundo Galeano, o que aqui chamamos bicicleta é na verdade o que ele chama de chilena, criação de Ramón Unzaga no campo do porto chileno de Talcahuano: "Com o corpo no ar, de costas para o chão, as pernas disparavam a bola para trás, num repentino vaivém de tesouradas".
Quem deu o nome foram os jornalistas espanhóis, quando o Colo-Colo viajou para a Europa e o atacante David Arellano deu lá suas "chilenas", uma "cambalhota desconhecida". Arellano morreu naquele ano, em Valladolid, num choque com um zagueiro. Não disse se foi dando uma chilena.
"A leste, a Muralha da China. A oeste, Domingos da Guia". Se houve alguma introdução mais espetacular para descrever um zagueiro, ainda estou por ler. "Nunca houve zagueiro mais sólido na história do futebol", conta. "Desprezava a velocidade. Jogava em câmera lenta, mestre do suspense, amante da lentidão: chamou-se domingada a arte de sair da área com toda a calma".
Se fala da invenção da bicicleta, ops, da chilena e da domingada, fala também da invenção do gol de peito. Só que não se trata de banalmente deixar a bola ricochetear na caixa torácica. Vai além.
"Foi em 1947. Botafogo versus Flamengo. Heleno de Freitas, do Botafogo, fez um gol de peito", balbucia. "Heleno estava de costas para o arco. A bola chegou lá de cima. Ele parou-a com o peito e se voltou sem deixá-la cair. Com o corpo arqueado e a bola no peito, enfrentou a situação".
Eu mal consigo imaginar. Pena que não filmaram. Galeano continua: "Entre o gol e ele, uma multidão. Na área do Flamengo havia mais gente que em todo o Brasil", se empolga. "Heleno pôs-se a caminhar, sempre curvado para trás, e com a bola no peito atravessou tranquilamente as linhas inimigas".
Quantos metros teria andado? O escritor não conta. Revê o lance na memória dos sonhos.
"Ninguém podia tirá-la sem fazer falta", esclarece. "Quando chegou nas portas do gol, Heleno endireitou o corpo. A bola deslizou até seus pés. E ele arrematou."
Não foi só aqui que o galã temperamental do Botafogo deixou viúvas. "Heleno de Freitas tinha pinta de cigano, cara de Rodolfo Valentino e humor de cão raivoso. Nas canchas, resplandecia". Bom de perfil, esse Galeano. "Uma noite, perdeu todo o seu dinheiro no cassino. Outra noite, perdeu não se sabe onde toda a vontade de viver. E na última noite morreu, delirando, num hospício".
Já li a biografia de Heleno. Não há, em suas duzentas páginas, parágrafos como estes.
Mas é Garrincha o jogador ao qual Eduardo mais recorre. Teve o privilégio de vê-lo ao vivo. "Às vezes, quando já estava pertinho do gol, dava marcha ré e começava tudo de novo, só para prolongar o prazer". Conta, em detalhes, um dos gols que Mané fez exatamente assim, na Itália.
"Garrincha invadiu a área, deixou um beque sentado e se livrou de outro, e de outro. Quando já tinha enganado até o goleiro, descobriu que havia um jogador na linha do gol", exclama. "Fez de conta que chutava no ângulo e o pobre coitado bateu com o nariz na trave. Então, o arqueiro tornou a incomodar. Garrincha meteu-lhe a bola entre as pernas e entrou no arco".
Outro gol que descreve em minúcias foi o gol do lateral-esquerdo do Brasil, na Copa de 1958. A Áustria perdia de um a zero e o lateral avançou, com a bola dominada. "O técnico brasileiro, Vicente Feola, corria pela lateral do campo. Suando em bicas, gritava: Volta, volta!"
O tal lateral, batizado como Nilton Santos, "o homem-chave da defesa brasileira, chamado de Enciclopédia pelo muito que sabia de futebol, avançou, partindo do seu campo. Abandonou a retaguarda, passou a linha central, esquivou um par de adversários e continuou seu caminho", diz.
Enquanto isso, Feola se esgoelava. Mas "Nilton, imperturbável, não passou a bola a nenhum atacante: fez toda a jogada sozinho, e culminou-a com um golaço".
Galeano conta que "Feola, feliz, comentou: Viram só? Eu não disse? Este sim, sabe!"
O escritor volta a Garrincha. "Jogava para um time chamado Botafogo, e esse era ele: o Botafogo que incendiava os estádios, louco por cachaça e por tudo que ardesse".
"Nunca houve um ponta-direita como ele", se rende o uruguaio. "No Mundial de 58, foi o melhor em sua posição. No Mundial de 62, o melhor jogador do campeonato". Reverencia: "Ao longo dos seus anos nos campos, Garrincha foi o homem que deu mais alegria em toda a história do futebol".
Fez também seu necrológio. "Garrincha morreu sua morte: pobre, bêbado e sozinho".
Eduardo Galeano, aparentemente sem perceber, vai desfiando uma lista memorável de craques botafoguenses. Longe da contaminação do clubismo, abre pequenos capítulos para os brasileiros que admira na história do futebol. Depois de Heleno, Garrincha e Nilton, chega a vez de Didi.
"Ele foi o eixo da seleção brasileira", afirma. "Corpo enxuto, pescoço longo, estátua erigida de si mesmo, Didi parecia um ícone africano plantado no centro do campo. Ali, era dono e senhor".
"Chutando de longe, enganava o goleiro com a folha seca", revela. "Batia na bola com o lado do pé e ela saía girando e girando voava, dava cambalhotas e mudava de rumo como uma folha seca perdida no vento, até que se metia entre as traves, no ângulo onde o goleiro não esperava".
Não é fraco não esse uruguaio.
Ele volta a Garrincha, agora na Copa do Mundo de 1962. "Sem Pelé, e sob a batuta de Didi. Amarildo brilhou no difícil lugar de Pelé; atrás, Djalma Santos foi uma muralha; e, na frente, Garrincha delirava e fazia delirar". Galeano reproduz a manchete do jornal local, no dia seguinte à semifinal, quando eliminamos os chilenos: "De que planeta veio Garrincha? perguntava o jornal El Mercurio, enquanto o Brasil liquidava os donos da casa".
Dedica capítulos curtos aos demais grandes craques dos anos 50 e 60: Di Stéfano, Puskas, Lev Yashin, Bobby Charlton, Uwe Seeler, Gento, Stanley Matthews, Beckenbauer, Eusébio, Pedro Rocha e até um tal Jimmy Greaves de quem eu nunca ouvi falar, nem antes, nem depois.
A maior Copa do Mundo de todos os tempos, a de 1970, ganhou amplo destaque. O jogo mais aguardado, entre os campeões do mundo de 58 e 62 - o Brasil - e o de 66 - a Inglaterra -, ganhou um capítulo exclusivo, titulado "Gol de Jairzinho". Ele narra o gol, passe a passe.
"Tostão recebeu a bola de Paulo César e avançou até onde pôde. Encontrou a Inglaterra inteira recuada na área. Até a rainha estava lá." Verdade. Podemos ver nos teipes. Conta como a bola chegou a Jairzinho, "que tinha aprendido a ganhar a vida no subúrbio mais duro do Rio de Janeiro".
Bem, até onde eu sei, Jairzinho é dali mesmo de Botafogo, na Zona Sul do Rio. Ainda moleque, pulava os muros de General Severiano, para ver o time treinar. Depois, mais taludo, tricampeão juvenil do Rio, a vida era dura mesmo: disputava a ponta-direita do time do bairro. O titular chamava Garrincha.
No México, na segunda partida da fase de grupos, estava zero a zero, quando Jairzinho "saiu disparado com uma bala negra, driblou um inglês e a bola, bala branca, atravessou a meta do arqueiro Banks". Eduardo não curte muito o Reino Unido. Sem disfarçar, comemora. "Em ritmo de festa, o ataque brasileiro tinha se livrado de sete guardiões. E a cidadela de aço tinha sido derretida por aquele vento quente que vinha do sul".
"Na final, o Brasil esmagou a Itália por 4x1". O autor repercute os jornais ingleses: "Deveria ser proibido um futebol tão belo". O Brasil ganhou pela terceira vez a Jules Rimet. Posse definitiva.
"No final de 1983, a copa foi roubada e vendida, depois de ser reduzida a quase dois quilos de ouro puro", denuncia o autor. Diz ainda que "uma cópia ocupa seu lugar nas vitrines". Não está no livro, mas tenho que complementar: roubaram a cópia também.
Não sei se o autor chegou a ser cobrado em vida. Quase metade dos jogadores brasileiros que cita no livro eram jogadores do Botafogo. Seria justo que uma parte (ainda que simbólica) dos royalties fosse para o time de General Severiano. Ao longo de 118 anos de penúria teria vindo bem a calhar.
Contra o capitalismo, contra o Primeiro Mundo, contra a mercantilização do futebol, contra os patrocínios, contra a enxurrada de jogos, contra a transformação dos atletas em máquinas de jogar futebol e em produtos globalizados - o escritor uruguaio abominaria as SAFs. Escapamos dessa.
Galeano fez um aditivo posterior ao livro, reunindo as copas recentes. Não tem o mesmo sabor.
Ainda que a contragosto, Eduardo não se furtou a fazer o panegírico do Peñarol, que se auto-intitula El Capo del Continente. Fala do célebre confronto entre os campeões de Europa e América do Sul, Real Madrid e Peñarol, em 1966. Dois jogos. Os uruguaios venceram ambos por 2x0.
"Na década de 60 o Peñarol herdou o cetro do Real Madrid, que tinha sido a grande equipe da década anterior", opina. "Naqueles anos, o Peñarol ganhou duas vezes a Copa do Mundo de clubes e foi três vezes campeão da América".
Tirei a foto que ilustra o post em outubro passado, na semifinal da Libertadores de 2024. O jogo foi contra este Peñarol, o tal vencedor de dois Mundiais e cinco Libertadores. Ainda assim, um bom e antigo freguês do Botafogo. Os eliminamos na Liberta de 1973, com duas vitórias, e fomos campeões da Taça Conmebol (hoje rebatizada Copa Sul-Americana) ganhando deles nos pênaltis, em 1993.
Na semana anterior, no Nílton Santos, metemos no Peñarol uma sonora goleada: 5x0. Eu quase me joguei da arquibancada, em êxtase. Os uruguaios ficaram tão perdidos, depois do vareio, que por pouco não fecharam a fronteira, para que o Botafogo não pudesse entrar no país em vias de escriturar o massacre.
Não adiantou. Fomos assim mesmo.
Nesse jogo de volta, em que os uruguaios ameaçavam trucidar os torcedores botafoguenses, seguimos temprano para o Estádio Centenário, sob uma mal-encarada escolta policial. Eu aproveitei o sol que caía, no fim da tarde, para homenagear um uruguaio decente.
Foi nas arquibancadas azuis de cimento carcomido que comecei a ler o livro de Eduardo Galeano.
De novo eliminamos o Peñarol (para alegria do autor, torcedor do rival Nacional) e nos classificamos para a finalíssima continental. Do outro lado do Rio da Prata, em Buenos Aires, exatos trinta dias depois, com um jogador a menos desde o primeiro minuto de jogo - fato inédito em sessenta anos do torneio -, o Botafogo perpetrou a mais gloriosa conquista da história da Copa Libertadores.
Se Galeano ainda estivesse entre nós, essa façanha sem dúvida daria um capítulo à parte.
O nome? o autor apreciava os títulos curtos. Tenho para mim que lhe bastaria "El Glorioso".
Editora LP&M, 256 páginas | 3a edição, 2013 | Copyright 1995 | Tradução Eric Nepomuceno
Título original: "El Fútbol a sol y sombra"
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