"Irmãos: uma história do PCC", por Gabriel Feltran

segunda-feira, janeiro 14, 2019 Sidney Puterman

"Irmãos" não é um relato de alcova da vida bandida - como o título poderia sugerir. É um livro sobre negociação e domínio de mercado. Sobre estratégias de liderança e compartilhamento de poder. Sobre um credo, uma seita ou, como o autor prefere, uma loja maçônica. Em suma, é uma obra que pretende mais interpretar a essência e o modus operandi do Primeiro Comando da Capital - o PCC, hoje a maior organização criminosa do país - e menos pormenorizar sua história e seus protagonistas. Nos primeiros dias de 2019, o grupo, aliado a outras facções, vem ostentando seu aparato de violência e praticando seu know-how incendiário contra a população do Ceará. A ação terrorista domina o noticiário e pretende derrubar o novo secretário de Administração Penitenciária. Este, por sua vez, é opositor ferrenho da divisão das cadeias entre as facções, o que levou todas elas a deixarem suas diferenças de lado e unirem-se contra o recém-nomeado secretário linha-dura. Ou seja, a queda de braço no estado cearense, entre o crime e o sistema, continua sem hora para acabar - e é tácito que muitas ações espetaculosas ainda disseminarão pânico entre o resiliente povo local. Para nosso alívio, entretanto, o PCC não aprova a violência gratuita - em tese. Segundo o livro, nenhuma das suas atitudes prescinde de cálculo e sua força provém da execução peculiar do seu conceito de justiça. O autor, Gabriel Feltran, é especialista no tema, tendo já lançado, em 2007, "Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo". Entremeado ao seu descritivo sociológico, o pesquisador defende em seu livro teses profundas e paradoxais. A primeira delas é atribuir à política de segurança do governo paulista a criação das condições orgânicas para o surgimento e organização do PCC. No entendimento de Feltran, a estratégia de combate ao crime do Estado de São Paulo, sob o comando do PSDB (que ele não nomeia, mas que, como todos sabemos, é o partido à frente do governo estadual na última década e meia), proporcionou ao mundo do crime as condições ideais para o desenvolvimento do grupo. Sua premissa é a de que a sucessiva construção de novas cadeias para um volume crescente de clientes incrementou a oferta de combatentes para as fileiras do crime; e as leis gradativamente mais rigorosas contra a massa carcerária favoreceram sua união em torno de um dispositivo agregador. A segunda e mais original de suas teses, contraditória em termos, é a de que a expressiva redução no número absoluto de assassinatos no estado, ao longo de mais de dez anos, não é fruto do sucesso da política de combate ao crime do poder público, e sim da normatização da atividade criminal sob a regulação criteriosa do Primeiro Comando. A terceira e última, relativamente trivial nestas plagas, é a consolidação da Organização como um poder paralelo, por seu avanço na substituição do Estado no fornecimento de serviços básicos, como Justiça, Segurança e Assistência Social. Feltran se dedicou a uma extensa e longeva coleta de dados no campo. Tornou-se íntimo de criminosos e seus familiares (a ponto de ter dirigido para a família de um deles quando de uma prisão imprevista). Decodificou o peculiar universo de códigos da periferia e do mundo marginal. De posse desta massa crítica, o autor traça a linha de crescimento da organização, assinalando seu ponto de partida: "O PCC nasceu na cadeia, um ano depois do massacre de Carandiru. Reivindicava a reação à opressão do sistema contra os presos, mas também do preso contra o preso." Segundo Feltran, "a reforma no mundo prisional paulista dos anos 1990 quadruplicou a população carcerária na década seguinte, impulsionada pela equivalência do tráfico de drogas a crime hediondo, que jogou dezenas de milhares de jovens nas cadeias". Colocando as cartas na mesa com base nos números oferecidos pelo pesquisador, no mínimo vinte mil jovens a mais foram presos, ao redor de dez anos, em virtude do endurecimento da legislação. Isto dá dois mil jovens a mais sob encarceramento por ano, ou seja, pelo menos 6 jovens por dia teriam sido presos, todos os dias, sem exceção de nenhum, por 10 anos consecutivos, por conta destas leis mais estritas. É um número importante, que temo não se confirme - o que, estatisticamente, fragilizaria sua tese, ainda que não a negue. Gabriel prossegue afirmando que, em 2001, a mega-rebelião simultânea em 29 presídios paulistas foi uma inequívoca demonstração de força do PCC, contragolpeada pela criação do RDD, o Regime Disciplinar Diferenciado. A partir daí, no ponto de vista do autor, uma espécie de onda de marketing, quase um merchandising criminal, oriunda da dimensão ampliada do confronto, disseminou a marca PCC por todo o estado de São Paulo. Este reconhecimento entre os  próprios pares fez com que o grupo se fortalecesse pela adesão da população criminosa, voluntária ou não, às regras da organização, às suas empreendedoras políticas comerciais e, acima de tudo, ao seu estatuto (seus parágrafos são ungidos pelo autor ao status de uma constituição, relevante a ponto de ser reproduzida, na íntegra, ao fim do livro). Cinco anos depois, em 2006, Gabriel destaca que "ataques coordenados na periferia de São Paulo somaram-se a rebeliões em mais de 80 prisões e que dezenas de policiais foram assassinados em uma só noite". Diz ainda que a resposta policial foram 500 homicídios em uma semana. Nesta no mínimo estranha conta de chegada - não a reputo mentirosa, equivocada ou inverossímil, mas não me furto a avaliá-la estranha -, a partir deste momento, por conta de um acordo não escrito, mas praticado, envolvendo as sintonias do PCC, cada um no seu corre e o policiais, "as taxas de homicídio seguiram em queda, atingindo os menores índices do país". Sendo seus números corretos, os homicídios de jovens caíram a 10% do que eram dez anos antes. Simultaneamente, uma grande rede de negócios ilegais seguiu em crescimento acelerado, da venda de drogas aos assaltos, incluindo roubo, desmanche e revenda de veículos (este quesito merece um interessante capítulo à parte, um dos pontos altos da obra, onde Feltran disseca a ampla grade de negócios que inicia na apreensão criminosa do automóvel - a parte mais arriscada e também mais mal remunerada de toda a operação - e irriga revendedores, desmanches, mercado de autopeças, fabricantes, seguradoras e leiloeiros), roubos a bancos e empresas de valores, a mansões, condomínios, caixas eletrônicos etc. Sua conclusão é de que a normatização do crime sob o pulso firme do PCC coibiu drasticamente o número de assassinatos, tirando assim os méritos constantemente auto-promulgados da repressão oficial do estado. O livro traz ainda um constrangedor raio-X do emprego dos advogados na organização, contados na casa dos milhares pelo autor, que explica: "Embora a função do advogado seja garantir o funcionamento rotineiro da Justiça, defendendo seus clientes individualmente, há muitas outras funções que os presos esperam conseguir deles, como levar recados a outras penitenciárias, bilhetes com salves para seus contatos, dinheiro e celulares para os presídios, mas, sobretudo, negociar a partir dos repertórios legais ou ilegais as progressões de pena, as liberações e os acertos financeiros com policiais, promotores, delegados e mesmo juízes, em nome do preso ou da facção." Ele ainda complementa com um depoimento de um dos antigos líderes do movimento, Macarrão: "Sempre o interesse maior nestas contratações de advogados era pela luta e pela defesa dos interesses do crime organizado. Eles são os legais. Onde a penitenciária não tem um telefone celular, tá com dificuldade de visita, quem age é o advogado." É. O professor não se inibe ao descerrar o véu das relações - que me parecem criminosas - entre o presidiário e seu representante legal. Gabriel tem mesmo uma visão bastante generosa quanto à ilegalidade. No caso específico do roubo de carros, onde não raro a cena do crime inclui violência e morte - falamos aqui de brasileiros inocentes, famílias em passeio, trabalhadores em deslocamento - o autor não se faz de rogado em legitimar o destino final dos veículos, sob a perspectiva das necessidades econômicas estrangeiras: "De tempos em tempos, Paraguai e Bolívia realizam regularizações de carros brasileiros rodando em seus territórios. Cada país defende sua economia como pode." Já eu acho que não pode. Nesta e em muitas outras circunstâncias resta evidente o quanto o universo do crime e das máfias que o controlam é sedutor para Gabriel Feltran. Pessoalmente, dou um desconto. Escritores ou não, somos seres humanos, boa parte de nós movidos a paixão. É isto que nos motiva e incendeia. Feltran se deixa legalmente incendiar por organizações ilegais que incendeiam ônibus e vans escolares. Ainda que compreensível, talvez este seu fascínio contamine o texto além do recomendável, embora o autor se afirme isento, ressaltando que "não busca julgar o que faz um ou outro lado da contenda". Não me pareceu. Mas leia você o livro - cujo conteúdo é uma matéria-prima e analítica singular, com bons momentos, aos quais acrescento aqui sua visão das correntes migratórias que alimentaram a periferia paulistana - e dê sua própria opinião. Preciosa é também a presença do dialeto dos seus entrevistados, com seus sintonias, salves e corres. Exemplifico com uma frase do estatuto, "numa sintonia, os disciplinas de cada quebrada devem conhecer todas as biqueiras locais", que, livremente traduzido, eu transcreveria "em um determinado controle circunscricional do Comando, os responsáveis autorizados de cada bairro/região devem conhecer todos os estabelecimentos de comércio ilegal da localidade." Há diversas outras expressões curiosas, como viajar a Miami (quando alguém é morto a mando de outrém), talaricar um irmão (ter relações sexuais com uma cunhada, como são chamadas as mulheres dos irmãos), a cebola (contribuição mensal devida à organização), o já mencionado corre (a especialidade no crime, a rotina criminosa) e a caminhada (a história de atitudes de cada um, que oferece a reputação do sujeito no crime). A linguagem, esta sim, me fascina. Mas voltemos ao crime, ou, melhor dizendo, ao tema da obra. Embora o autor não tenha economizado nos dados estatísticos, não foram suficientemente incontroversos para que eu endosse sua principal tese, a de que a gestão do PCC é a responsável determinante pela redução de crimes em São Paulo. A meu ver, faltaram subsídios para assegurar sua teoria - possível, mas não provada; razoável, mas não evidente. Reduzidos, seus argumentos se reproduzem demasiado. Sem oferecer conteúdo complementar, Feltran a cada quinze páginas se repete, como se fosse um clipping de textos antigos seus sobre o mesmo assunto. Em uma organização sequencial e ininterrupta como ondas vindo dar à praia, o autor exalta o proceder e o estatuto do Primeiro Comando. O pesquisador deixa de lado as diversas realidades e confrontos que poderiam negar sua tese principal, como a sublevação interna, a existência de áreas fora de controle, o crescimento de grupos rivais, as reações da política de segurança, as conveniências de cada área periférica etc. Mais que tudo, na visão de Gabriel Feltran, o Primeiro Comando da Capital está na posição privilegiada que ocupa por ser defensor de um superior código moral de justiça. Nele não há chefes ou interesses pessoais. A gestão é compartilhada por mérito. O uso da força é reprimido e aplicado somente em necessidade extrema, mas sempre sob a ótica do que é justo. Todos têm a mesma importância e igual acesso à proteção e à justiça. Visto assim, parece mesmo a descrição do mundo ideal. Digo mais: este mundo do crime descrito pelo autor está espiritualmente muito acima do ambiente mundano em que vivemos no dia a dia. Mas, por outro lado, é um mundo em que a pena de morte é banal, em que o acesso à plena defesa é restrito e onde as penas são executadas imediatamente após a decisão colegiada. É um mundo que extrai sua sobrevivência da subtração violenta do conquistado pelo esforço alheio. Que tem uma política assistencialista, característica da pior política praticada no Brasil nas últimas décadas. Que tem uma filosofia militarizada, como prescreve o artigo 11 do seu estatuto: "Toda missão destinada deve ser concluída", equivalente ao estigmatizado "missão dada, missão cumprida". Eu, particularmente, acho a nossa sociedade, a legal, eivada de equívocos e injustiças. Mas esta versão admirada por Feltran não me parece muito diferente nos defeitos. Talvez alguns ainda não tenham vindo à luz devido à relativa pequenez deste novo sistema paralelo, mas o inevitável inchaço deste dragão justo e criminoso levaria a disputas intestinas de poder idênticas às do congresso, das prefeituras, das estatais etc. Em miúdos, mesmo em uma extremada utopia, onde o novo regulamento do crime se imporia e substituiria primeiro a polícia legal, e depois a própria administração social, o resultado final acabaria na vala comum. Respeito a caminhada e o corre de Gabriel. Mas divergimos de paixão, o que é da natureza individual. O que não resta dúvida é que os veículos incendiados no Ceará nos aproximam mais da África do que da Escandinávia.

Companhia das Letras, 318 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: