"Os subterrâneos do futebol", por João Saldanha

quinta-feira, agosto 03, 2017 Sidney Puterman

Há quem considere João Saldanha o maior personagem do futebol brasileiro fora das quatro linhas. Me coloca aí entre eles. Sou fã do cara e torcemos para o mesmo time. Assim, quando o João Sem Medo completou 100 anos, dia 3 de julho, resolvi comemorar relendo seu primeiro livro, que já aluga há algumas décadas uns centímetros quadrados na minha estante. O livrinho é melhor do que me lembrava. Na verdade, a simplicidade deste divertido maragato de Alegrete esconde uma sabedoria urbana rara de achar. Não à toa o sucesso que fez. Muito tempo depois que bateu as botas, ele ainda é um mito como técnico da Seleção Brasileira, uma referência como jornalista esportivo e uma estrela que não se apaga na história do clube da estrela - o Botafogo. E, como ia dizendo, estreou como autor já quarentão, em "Os subterrâneos do futebol", contando as suas próprias estórias de treinador iniciante. Ele fala inclusive como começou a carreira: o técnico de então, Geninho, pediu uma baba pra renovar e entrou numa queda de braço com o presidente do Botafogo, Paulo Azeredo.  Se desentenderam às vésperas de uma viagem do time para São Paulo. Sem técnico, sobrou pro João: "O jeito é você ficar com isso (isso era o time do Botafogo). Depois se arranja uma saída." Como o campeonato já estava definido, João topou, pois "o jogo era só para constar." Começava ali uma das mais inusitadas e famosas carreiras de treinador de futebol - com o João reclamando que o Botafogo, já naquela época, só tinha "a conta do chá". Não é de hoje. O texto do "professor" chegou às livrarias em 1963 e tem sua terceira edição agora, mais de meio século depois. Meu exemplar, castigado e amarelado, é o da segunda edição, que li assim saiu do prelo, em 1980. Não empresto e não dou. O livreco, naqueles tempos d'O Pasquim, era só uma coleção de causos sobre um passado recente. Hoje é uma nostalgia bíblica. Por devoção, reli, e, por justiça, advirto que Saldanha permanece atual. Pudera: nossos problemas são crônicos e giram dentro de um nauseabundo círculo vicioso. Por outro lado, o que tínhamos de melhor no futebol, aquilo que nos diferenciava, já não existe mais. Me parece que nos acorrentamos aos nossos defeitos e vimos nossas virtudes se distanciarem, à deriva. Porque já fomos bons nesse tal de futebol. Dizia o João: "Somos campeões do mundo de futebol de fato e de direito: não existe nenhum país do mundo que possa formar tantas equipes como nós. Se tomarmos vinte clubes e fizermos uma competição com vinte outros de qualquer país, ganharemos, no mínimo, umas quatorze ou quinze partidas. Bons times, em grande quantidade, não existem em lugar algum como no Brasil." Bons tempos. Foi quando inventamos o olé, num amistoso entre River Plate e Botafogo, em 1958. Nós, vírgula. "Havia no Estádio Universitário, na Cidade do México, cem mil pessoas comprimidas para assistir ao jogo. O time do River era uma máquina. Modestamente, jogamos trancados. Se abríssemos, tomaríamos um baile. Foi um jogo de rara beleza. De um lado Rossi, Labruña, Vairo, Menéndez, Zarate, Carrizo. De outro, Didi, Nilton Santos, Garrincha etc. Jogo duro e jogo limpo. Poucas vezes vi um jogo ser disputado com tanta seriedade e respeito mútuos. Mas houve um espetáculo à parte. Mané Garrincha foi o comandante. Dirigiu os cem mil espectadores, fazendo reagirem à medida de suas jogadas. Foi ali, naquele dia, que surgiu a gíria de Olé, tão comumente utilizada posteriormente em nossos campos. Não porque o Botafogo tivesse dado Olé no River. Não. Foi um olé pessoal. De Garrincha em Vairo. Nunca assisti coisa igual. Só a torcida mexicana com seu traquejo de touradas poderia, de forma tão sincronizada e perfeita, dar um Olé daquele tamanho. Toda vez que Mané parava na frente de Vairo, os espectadores mantinham-se no mais profundo silêncio. Quando Mané dava aquele seu famoso drible e deixava Vairo no chão, um coro de cem mil pessoas exclamava: Ôôôôôô-lê! As agências telegráficas enviaram longas mensagens sobre o acontecido e deram grande destaque ao Olé. As noticias repercutiram bastante no Rio e a torcida carioca consagrou o Olé. Foi assim que surgiu esse tipo de gozação popular." E João ainda contou que os argentinos jogaram entusiasmados com o sorteio da Copa do Mundo da Suécia: "Chegaram até a dançar de satisfação. Enquanto o Brasil pegava a chave mais carne de pescoço, com a Áustria, Inglaterra e União Soviética, a deles era a mais fraca." Este período romântico do futebol era também salpicado de suborno, doping, racismo e bagunça. "O que determinou a concentração no futebol brasileiro foi o suborno. Até espias havia para examinar os visitantes. Se chegasse alguém suspeito... Esta era uma preocupação constante de clube grande e o raciocínio era simples: se nós estamos sempre pensando em dar na horta deles, eles também devem estar pensando nisso." Já a célebre goleada de 6x2 do Botafogo na final de 57, no favorito tricolor, com 5 gols de Paulinho Valentim, teria sido regada a Exebrin, um remédio alemão usado na Segunda Guerra para entusiasmar a nazistada. Segundo o vocabulário da época, jogadores dos dois times teriam tomado uma pimenta. Já o preconceito racial era escancarado. Revela, nos anos 50, ter escutado de cartola: "João, vê se dá um jeito nisto e manda esses crioulos saírem da sede." Lógico que não seguiu o pedido - até porque aquele mesmo diretor "entrava no campo depois da grande vitória e abraçava-se a todo o time, brancos ou pretos, suarentos e fedidos." Mas, fora meia dúzia de páginas mais sérias, a obra é uma entregação das traquinagens do elenco. Para quem gosta, um prato cheio, um buffet com as reflexões deste técnico-jornalista e as caravanas aéreas do alvinegro no final dos anos 50. Falado assim, pode parecer areia, mas é ouro em pó. São impagáveis e deliciosas as peripécias do Botafogo e seu ataque campeão do mundo pelas Américas e pela Europa, sempre sob a égide da desorganização: "A bagunça organizada é um fenômeno geral de todos os grandes clubes brasileiros." Mal sabia ele no que isso daria, e que viraríamos um país de Olarias. No fim, o que vale é mesmo o tanto que se ri com as excursões mambembes em troca de vinténs, com o Garrincha querendo comer todo mundo. E o pior: conseguindo...

Livraria José Olympio Editora, 165 páginas


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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