"O réu e o rei", por Paulo Cesar de Araújo

terça-feira, março 08, 2016 Sidney Puterman

Quando o autor lançou a biografia "Roberto Carlos em detalhes", não me interessei. E olha que eu já li um caminhão de obras publicadas sobre a música popular brasileira. Já fui de de Jobim a Noel, de Caymmi a Adoniram, de Carmen a Tim Maia, passando por Simonal e Lobão (destas oito, quatro são de primeira linha e as demais são superficiais, pretensiosas, confusas ou aduladoras). Mas esta, sobre o "Rei", não me instigou. Havia lido alhures que o autor era um fã de Roberto. Concluí que seria uma pesquisa pouco crítica e repleta de platitudes, aquele chapa-branquismo que tanto agrada aos intocáveis. Qual não foi minha surpresa, porém, ao ver a reação da majestade biografada e toda a polêmica pululante. O livro foi julgado, proibido e tirado de circulação, como se se tratasse de um reles trombadinha pego em flagrante, afanando a carteira real (ou um estuprador, na infeliz comparação de Roberto Carlos que não foi ao ar). O autor baiano foi espinafrado. Artistas outrora vigiados pela censura se avocaram censores. Apoiaram o capixaba Roberto Carlos Braga na sua cruzada contra a produção biográfica não-autorizada. A querela teve seu contra-ataque: Paulo Cesar de Araújo e seu livro se tornaram o estopim da reação dos intelectuais contra a esterilização da história pátria. Então eu já me arrependera de não ter comprado a controvertida biografia sobre o cantor da Jovem Guarda, que perdera a perna e seduzira, pleno de meiguice, duas gerações de brasileiras. Impedido de publicar sua pesquisa original, Paulo Cesar lançou o livro possível, que nada mais era do que a história do seu livro incinerado. Comprá-lo e lê-lo era a adesão a um protesto cívico. Me incluí nas duas categorias. Entretanto, não foi fácil engrenar no texto comportado do autor. Desinteressante. Reminiscente em demasia, descrevendo a infância do biógrafo em Vitória da Conquista e sua paixão infantil pelo rei Roberto. Discorre sobre sua obsessão em comprar cada novo disco. Do garoto que passou a noite na porta do show, esperançoso em ver ao vivo o astro, e, por falta de dinheiro, não conseguiu. Esse cara era ele. Que vai montando sua estória, repleta do seu ídolo. Pouco a pouco, apesar de entediado pela enxurrada de detalhes, me dei conta: era um livro bem escrito. O fã era escritor de ofício. Muitas minúcias, mas que se encaixavam. Quando o PC pós-SP e já universitário niteroiense se tornou pesquisador da MPB, a obra já exibia tônus. Paulo Cesar era agora camarada de Tim Maia e afilhado telefônico do criador da Bossa Nova, o também baiano João Gilberto. Apesar das muitas entrevistas bem-sucedidas, não esmorecia nas suas tentativas de um téte-a-téte com RC. Quinze anos de cercos frustrados, que resultaram numa biografia sobre um biografado arredio e inconclusivo. PC lançou a bio de RC e RC tentou mandar prender PC. O tiete foi rejeitado pelo ídolo. Os milhares de livros impressos foram confiscados. O autor virou um pária. Suficiente para que Paulo Cesar de Araújo passasse a ser o sujeito sobre a face da terra com mais motivos para odiar o ídolo que virou carrasco. Mas, vou lhe dizer: não é esta a têmpera de PC. Seja lá de que barro esse baiano foi moldado, não é dos fáceis de encontrar. As sucessivas e carinhosas referências de Araújo a Braga, o biografado que espezinhou, destratou e escorraçou o biógrafo, me impressionaram por uma humildade que me pareceu quase doentia. Como alguém publicamente humilhado como o fôra o escritor tinha estômago para tratar com tanta reverência e admiração aquele que o maltratara, sem dó? Aí então comecei a perceber toda a grandeza da humildade de Paulo Cesar de Araújo. E compreender que, não fora ela, o movimento que resgatou para a posteridade o direito de saber a própria história não teria acontecido. Fosse PC belicoso e teria sido muito fácil para a infinita legião de adoradores do "Rei" voltarem suas baterias contra o aproveitador que ousara contrariar a divindade (ex-) encaracolada da MPB. Mas não. Paulo Cesar é o Gandhi dos biógrafos. Sua capacidade de aceitação da adversidade material e moral foi aos poucos desmontando o ataque organizado pelos advogados de Roberto Carlos Braga. E, lendo "O réu e o rei", me vejo aplaudindo o réu e sua importância para a história nacional. Que, creio, não para por aqui. O texto de Araújo é soberbamente organizado. Nele, tudo se encaixa, como se o autor partisse de um lego disforme e monumental e não deixasse sobrar uma única peça fora de lugar. Na sua correção, Araújo é brilhante. Não li - ainda - o seu livro anterior, "Eu não sou cachorro não". Mas lerei - este e os próximos. Vou ler os detalhes da biografia do rapaz de Cachoeiro que um dia será reescrita e relançada, seja a que termo for. Disse eu, há coisa de dois anos, quando Mário Magalhães publicou seu fenomenal "Marighella", da importância retumbante dos grandes biógrafos. Ainda que cada um com um seu estilo e background, tenho aqui também que saudar a chegada de Paulo Cesar de Araújo a este panteão, tão pouco habitado nestas plagas do axé e dos pixulecos. Araújo, na sua obstinação pelo passado e na sua doce insubmissão às cortes, permitiu que uma luz fugidia iluminasse a espessa escuridão à qual nosso futuro seguia em vias de ser condenado.

Companhia das Letras, 521 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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