"Traços de Koeler", por Flavio Menna Barreto e Eliane Marchesini Zanatta

segunda-feira, junho 29, 2020 Sidney Puterman

Pequena obra-prima. Flor do pântano. Soberba, supimpa, necessária. Petrópolis é uma cidade que precisa ser cortejada. Eu, que não sou ninguém, há doze anos atrás escrevi para ela uma campanha cujo mote era "Linda outra vez". A campanha tinha suas limitações, mas o nome era justo. Remetia à retomada do cuidado público com um município de história peculiar. Pois se eu estivesse por aqui em 1843 e me incumbissem da tarefa, seria ainda mais atrevido - assinaria "Linda de pirraça". Um título convencido, mas apropriado, para divulgar a vila recém-criada. Não duvide. Diferente de tantas outras, acanhadas, Petrópolis veio ao mundo para ser desejada. Não à toa: ela foi desenhada na prancheta, antes de escavada nos alagadiços. Danada, surgiu do nada. Porque até pouco antes ela era chamada apenas "serra-acima". Vira e mexe cortada pelos tropeiros, virou "Caminho das Gerais". Então no itinerário se abriram fazendas. "Fazenda do Padre Côrrea", "Fazenda do Retiro", "Fazenda do Córrego Seco". Por única disponível para aquisição, foi esta que D. Pedro I comprou e que depois perdeu. O credor inglês Samuel & Phillips tomou e arrendou - mas, por cisma e antevisão, o mordomo Paulo Barbosa costurou para recuperar. Político habilidoso, retomou o sítio para o filho do primeiro Imperador, que fôra para Portugal vencer uma guerra, dez anos antes. Nosso ex-Imperador virou lenda por lá (numerado como Pedro IV, aclamado como o Rei Soldado), mas não sobreviveu. Assim, com estes tantos desvios, a recompra se deu e a estória teve um final, ou novo início, feliz. Foi então integrada ao patrimônio do jovem imperador Pedro II, e na fazenda se cumpriu o destino de se erguer um palácio, subir uma igreja e abrir um cemitério, vendendo aos vivos lotes na vizinhança. E veio gente de todo lugar. Ricos, barões e remediados. Tropeiros e taberneiros. Os de mais prestígio receberam os prazos, os de mais dinheiro os compraram. E tantos foram os que vieram, que, em uma década e pouco, o povoado virou cidade. Resumindo, foi assim. Acrescento eu também que, cem anos depois, minha avó Leopoldina Cardoso de Carvalho Braga, uma morena de Ilhéus determinada e feminista, cismou de comprar uma quitinete, no prazo ainda pertencente ao domínio dos descendentes do imperador. Noves fora a aprazível Petrópolis ter virado capital fluminense - ter vindo Getúlio veranear, ter sido nela construído o maior cassino da América etc -, foi por minha vó Lili ter ficado caidinha pelo lugar que estou aqui para dar este testemunho desimportante. Ela antes trazia minha mãe Maricota para andar de charrete e - o máximo do chique - sentir frio. Depois, minha mãe curitibana e meu pai polonês casaram em Copacabana e vieram passar a lua-de-mel no Taquara, na divisa do que, na época de Koeler, seria do Simmeria com a Fazenda Quitandinha. Pois foi assim, com todas estas peripécias genealógicas, que terminei vindo encher as burras imperiais com meu laudêmio plebeu. Mas, quer saber? Não nasci para viver noutro lugar. Petrópolis, a que veio ao mundo já exibida, é filha da vasta experiência nas serras do franco-teuto-brasileiro Jules Fréderic, ops, Julius Friedrich, ou melhor, Julio Frederico Koeler. Nascido em uma cidade alemã no apogeu da França napoleônica, filho de botânico estudioso, Koeler tentou ser militar prussiano, depois médico, depois arriscou emigrar para os Estados Unidos da América, mas, veja só, acabou carioca. Como este excepcional livro sobre os seus rastros e traços nos conta, ele veio dar as caras no Brasil graças a um seu conterrâneo polêmico, Georg Anton Schaeffer. Dono de uma fazenda lá pros lados da Ilhéus de minha avó, Schaeffer era especializado em trazer alemães para o império brasileiro - fez ao todo 20 viagens, cuja penúltima foi justo a que trouxe o engenheiro. Ou melhor, aprendiz de, pois foi chegando aqui, aos 24 anos, em julho de 1828, que Koeler aprendeu o ofício. Depois, coube ao próprio Koeler arregimentar milhares de alemães para vir povoar a serra e a cidade que ele idealizou. Quer saber mais? corra atrás do livro. Porque tudo que falei (exceto minhas pretensiosas digressões autobiográficas) e muito mais estão no texto enxuto de Flavio Menna Barreto. Ele nos conta sobre o nascimento da Cidade Imperial, com um imprescindível resumo da biografia do seu idealizador, Koeler. Poucas edições disponíveis reúnem de forma tão consistente e organizada a história da cidade, que é exemplo vivo da própria História (com "H" maiúsculo, Sr. Revisor). O apanhado de Menna Barreto conta a chegada dos trilhos, as primeiras sondagens, a decisão pelo local, a contratação da imigração alemã, o pensamento da vila e a demarcação dos prazos. Conta da vinda do Imperador para quarenta verões e da súbita morte de Koeler, tão bizarra quanto suspeita. Quem quiser saber como Petrópolis aconteceu, pode se saciar com este "Traços de Koeler". Quem estiver ansioso por entender o espírito que norteou o erguimento da cidade, vai ter no livro um roteiro acabado. Vai compreender também um tanto do Brasil caprichoso e arbitrário daquele tempo, que nem é tão diferente do Brasil que vivemos hoje. Em uma minuciosa segunda parte, Eliane Marchesini Zanatta traz em pormenores o trabalho de recuperação da Planta Original da cidade e também da Grande Medição Judicial de 1772. Edição rara, para colecionadores de livros e amantes da cidade. Eu me alinho entre os últimos. Com orgulho, por favor.

Globalmídia Comunicação, 236 páginas | 1a edição | Copyright 2016


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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