"Destinos invisíveis", por Guilherme Canever

domingo, junho 14, 2020 Sidney Puterman

Guilherme Canever é o mais direto dos viajantes. Ele vai. Misto de turista e peregrino, ele, mochilão às costas, cruza territórios ignorados, caçando sempre um novo canto desconhecido. Chegando lá, ele pouco se demora. Há sempre um novo lugar para conhecer. Guilherme é um nômade. Madruga para chegar cedo na próxima paisagem. Sem sombra de egoísmo, compartilha conosco as anotações de viagem. São claras, cristalinas. A tal ponto, que parece que viajamos com o autor no banco ao lado. Entre ele e as galinhas. Ou, esfomeados, dividindo com ele um prato feito numa birosca senegalesa. Ou um quitute em pé em uma barraca no Zimbábue. Se o seu propósito é segui-lo, nem cogite olhar para o lado, porque ele já foi, cortando a África em fatias pequenas. E saborosas. A pequena África, das pessoas, das estradas, das aldeias distantes, dos amigos súbitos. Ao lado de Guilherme conhecemos um mínimo do que não saberíamos jamais. É uma epopeia. Porque você, leitor, não se iluda: você nunca irá nos lugares que Guilherme foi. Sem chance. Mas, lendo o seu roteiro, você sente o cheiro dos lugares. Ouve os sons, percebe as cores. E ainda ri das roubadas. O que, cá pra nós, já vale muito. Não é todo dia que a gente se mistura com a África, de cabo a rabo. O método de Guilherme é a simplicidade. Como fui, onde comi, o que vi, dormi de que jeito, quanto custou, quando parti, se deu ou não para tomar banho. Seu livro tem uma estrutura de almanaque (o anterior que li, "Viagem aos países que não existem", também era assim - busque aqui no blog ou copie e cole https://bit.ly/2XweuwC). Na folha de abertura de cada rota, um mapa estilizado mostra os países e pontos de destino. A cada país visitado, uma página dupla resume as principais informações da história local. Esta sua obra do ano passado, que desce e sobe a África, é sobre os países que existem (ou seja, ao contrário dos visitados em seu outro livro, têm existência legal reconhecida) - mas que são invisíveis. São pobres. São africanos. No dia a dia, ninguém vê, ninguém quer saber. Quase ninguém. Guilherme quer. E vai, com o dinheiro contado. Talvez com uma reserva para emergências. O barato (literalmente) é não gastar como um turista. Dorme no canto mais em conta que acha - bancos, pisos, sofás, inclusive no chão das rodoviárias. Nem sempre é tão ruim como parece (ele conta que no Níger as rodoviárias têm banheiros coletivos, com chuveiro, e esteiras disponíveis, para os viajantes esticarem as pernas e passarem a noite; são tantos os viajantes que não sobra lugar para pisar). Guilherme dormiu também no chão de postos de gasolina. Não porque alguma coisa deu errado. É o lugar onde os passageiros dos táxis coletivos passam a noite, na estrada que sobe do litoral da Liberia para o interior da Guiné (por falar em noite e em Libéria, foi na capital do país, Monrovia, que Guilherme deu um dos poucos pitis da sua longa jornada, quando seu jovem anfitrião do couchsurfing colocou-o para dormir com a namorada, que roncava, sintonizou a tv em canal nenhum, mas que chispava alto, e dançou no quarto quente durante toda a madrugada - seu educado protesto foi abrir mão da segunda noite na casa do rapaz, uma casa que, além do mais, não tinha banheiro). Comer é outra necessidade básica onde se pode imergir na cultura local e ao mesmo tempo poupar o rico dinheirinho. Guilherme, se apertar, nem pensar. As barracas de rua, ou de estrada, são sempre uma opção fácil para as refeições do dia. O desjejum pode se restringir a um saco plástico com café quente e o almoço a um suculento cérebro de bode assado, com um pãozinho para acompanhar o bicho. Outra boa é achar onde a galera local come e pagar 1 euro em um prato de arroz e peixe com molho de amendoim. Canever viaja o mais pobre dos continentes, na rotina do cidadão comum de lá. Você não vai encontrar outro como esse cara. Não pense que o autor é demasiado orgulhoso dessa humildade. Ou que ostente uma falsa modéstia, mochileiro casca-grossa que é. Pode esperar sentado. Guilherme nem sabe o que é isso. Ele apenas viaja. Cruza fronteiras de moto-táxi, dorme em pocilgas sem perder o sono pelo passaporte confiscado, pega caronas imprecisas e corre para pegar o último lugar em um calhambeque lotado que ele não sabe onde vai parar (era madrugada e ele não podia perder o último lugar, fosse para onde fosse). Ele também viaja de trem, mas ao seu estilo: no fundo de um vagão de transporte de minério vazio, de tanto em tanto subindo a escadinha para ver a paisagem do deserto. Tudo vale a pena. Ele se impõe uma pressa imaginária, interrompida para passar uma tarde entre girafas selvagens, rodando ao seu redor, em uma savana empoeirada qualquer. Faz amigos, pega praia e vê péssimas partidas de futebol. E se move para o próximo destino. Nesse seu livro, começa por Gana, roda Burkina Faso, vai para o Niger, daí pro Benin e dali pra Togo. Isso em 2015. No ano seguinte, enfileira Senegal, Gâmbia e Guiné-Bissau e depois desce pro sul, Lesoto, Suazilândia e Zimbábue. Em 2017 ele pega leve, se restringe a Argélia e Tunísia. Mas em 2018 ele volta com tudo e envereda por Serra Leoa, Libéria, Guiné, Mauritânia e Mali (rota que complementa o seu primeiro livro, "De Cape Town a Muscat: uma aventura pela África", que ainda não li). É pouco? Em todo lugar acha um pouso, em lugar nenhum se atrasa. Bem, também ele topa o que aparecer pela frente e acha bom: na ilha de Djenné ficou em um hotel abandonado, e comemorou que o quarto "tinha até um vaso sanitário". Teve vez que estrilou: o quarto tinha beliches com colchões rasgados, fezes de animal pelos cantos, não dispunha de lençol nem mosquiteiro, e, enquanto Canever tomava banho na pocilga, babuínos entraram no banheiro para beber água e fazer amizade com o brasileiro pelado. Foram expulsos a lançamento de sabonete e esgrimados com um frasco de xampu. Como diria o Faustão, ô loco. Mesmo sendo tão fora do padrão, dá dicas boas para qualquer turista convencional, como o alerta de que quem reserva sempre paga mais caro do que quem aparece de repente no balcão do lugar. Diz ele que sempre dá para negociar. Hummm... acredito e agradeço a dica, mas faço parte do time que reserva com seis meses de antecedência. Quem gosta de pagar pouco e ser surpreendido é o Guilherme, não eu. Eu topo só a parte do pagar pouco. E adianto que não negocio vaso sanitário, pra mim é com ou com. Guilherme não tá nem aí para essas comodidades burguesas. A única coisa que importa é explorar o próximo destino. Entre muitos, ele descobriu um país que é um rio dentro de um outro país: a Gâmbia. Literalmente, um país à margem. Sua expedição África adentro traz esta e muitas outras surpresas, como viajar debaixo de neve nas montanhas gramadas do Lesoto. Ou assistir oitocentas meninas seminuas dançarem, ávidas na expectativa de se tornarem a Escolhida do Ano a integrar o harém do rei da Suazilândia (que mudou de nome e agora é eSwatini). Ele vai atrás dos recantos mais escondidos e persegue também os mais simples: Guilherme rodou cinquenta quilômetros de bicicleta para dar um mergulho e comer um peixe. Cruzou uma estrada sem fim no meio da mata empurrando uma moto de pneu furado. É um cara tão fora do gibi que pega um vôo Curitiba-São Paulo-Johanesburgo-Maseru e que, ao pousar no aeroporto situado na área rural da cidade, se recusa a pagar uma baba na van que leva ao centro da cidade e vai pra beira da estrada pedir carona, feliz. Com ele não tem tempo feio. Na sua toada, aprendi bastante. Bacana saber que o Alto Volta (antes assim chamado porque era a parte superior do rio Volta, por onde os portugueses voltavam para o litoral) passou a se chamar "Terra dos homens honrados" (em dioula, Burkina Faso) e que lá o sanduíche de taturana frita em óleo é top. Que Níger e Nigéria não ficam um dentro do outro, são fronteiriços; que no Togo o coco sai por cinquenta centavos; que embora a língua oficial de Guiné-Bissau seja o português, só 15% dos locais falam o idioma; que, triste saber, 25% dos adultos de eSwatini têm o vírus da Aids; que Serra Leoa é uma espécie de Babel da diáspora negra: no século XIX os ingleses repatriaram seus escravos para a região e a colônia que eles criaram lá se desenvolveu em uma nova etnia, com um novo idioma, o krio, fusão de inglês com diversos dialetos africanos; que a Libéria teve uma história parecida com a de Serra Leoa, com a diferença de que lá não foi erguida colônia nenhuma, os ex-escravos foram simplesmente despejados no continente e iniciaram uma luta com as tribos locais que repercute até hoje; que o preconceito de negros contra negros ainda perdura na África, como a execração a que estão expostos os haratines, mauritanos negros de costumes árabes e considerados uma casta inferior; que uma cidade no meio do deserto, Chinguetti, é famosa por suas bibliotecas com pergaminhos ancestrais; e que todo este enciclopedismo que estou enfileirando aqui é um mero fiapo dos lugares nos quais Canever pisou - seu sangue já veio contaminado com DNA aventureiro (há meio século o avô do Guilherme zanzou um monte pelo deserto do Saara). A edição tem o layout característico do seu bem batizado selo, "saiporai.com". As fotos e ilustrações, ao invés de virem em um caderno couchê à parte, vêm impressas no papel padrão do livro. Isto permitiu um bônus extra para o leitor de livros de viagem, que é uma generosa quantidade de imagens. Para ficar dez, a diagramação poderia ter contemplado o leitor com a sincronia entre imagem e texto (principalmente nos pequenos boxes das páginas duplas com a foto estourada), embora saiba que o quebra-cabeça para fechar o livro se tornaria muito mais exigente. Minúcias. Após assistir o Guilherme rasgar a África do cocuruto ao dedão, a gente termina o livro com um gostinho de quero mais - mais países, mais pessoas, mais locais invisíveis. No seu texto de orelha, que fica no fim do miolo (a edição é à van gogh, sem orelha), a definição é precisa: "Um relato de 20 mil quilômetros percorridos em 18 países que não estão estampados nos anúncios das agências de viagem". Pode crer que não estão. E, provavelmente, jamais estarão. Ainda que a invisibilidade a que se refere o título remeta à irrelevância do continente africano na geopolítica mundial, Guilherme Canever faz você olhar a África com outros olhos. O Atlântico continua ali, mas, depois do livro, a velha e boa África ficou mais próxima.

Pulp Editora, 289 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: