"A vida secreta de Fidel", por Juan Reinaldo Sánchez

sábado, outubro 18, 2014 Sidney Puterman

Como hoje em dia Cuba e sua elite são subvencionadas com o dinheiro do contribuinte brasileiro (e eu conformada e dispendiosamente - mais dispendiosa do que conformada, registre-se - me alinho entre eles), achei adequado me inteirar um pouco mais sobre o cronograma de gastos empreendido pela direção da ensolarada ilha. Soube que o antigo responsável pela escolta de Fidel Castro, Juan Reinaldo Sánchez, que o havia servido direta e intimamente por 17 anos, havia publicado uma biografia contando tudo sobre a rotina do mais longevo caudilho da América Latina ainda no poder. Parecia interessante. O primeiro cuidado, porém, era não me deixar iludir pelo óbvio sensacionalismo do assunto - teria o tal guarda-costas realmente sido próximo do ditador? Em que situação alguém que fôra tão íntimo resolvera confessar o que se passava ao redor daquele a quem ele se dedicou a proteger? Pois é. Com o pé bem atrás, iniciei a leitura. Não queria levar gato por lebre - vai que o cara atiça sua curiosidade e você, instigado, compra o peixe errado. Com essa cautela em mente, avancei nos primeiros capítulos - até que picarescos. É divertido saber que o generoso guerrilheiro mandou içar duas vacas para o quarto andar do prédio da amante, unicamente para beber leite fresco após seus encontros; que esse famoso caudilho barbudo de origem espanhola possui um sem número de mansões e ilhas particulares, vivendo como um nababo em um país miserável; que em suas viagens internacionais ele, fofo, se dá ao luxo de levar a própria cama e as pantufas; que sua primeira mulher teve o desplante de traí-lo com um reles motorista, alcovitada por sua própria sogra; y otras cositas más. Todavia, se fossem só essas, seriam particularidades que não justificariam a compra do livro. Felizmente, para mim, a partir de um determinado instante as revelações encorpam e entregam informações relevantes. Segundo Sánchez, Cuba é um país de espiões: "Cada fábrica, cada instituição, todos os ministérios e escolas das menores aldeias têm infiltrados ou são controlados por agentes. Fidel e Raúl são informados em menos de 24 horas sobre a menor crítica feita ao regime pela população." Um imenso Big Brother comunista, onde somente as autoridades têm acesso ao que passa na telinha. Quanto aos participantes do programa - o povo -, têm por único direito o de serem eliminados. À vera. Impossível também é ignorar a praxe do serviço diplomático, no exterior, em cooptar "agentes de influência" simpáticos a Cuba (geralmente professores universitários, políticos, jornalistas, artistas, etc), que possam se tornar intermediários de opiniões pró-castristas: os aliciados, em vez de bem-quistos, são chamados com desprezo de "idiotas úteis". No último quarto do livro, o texto se estende sobre política externa, com menções esparsas (e nada alvissareiras) sobre o Brasil. Mas é a Venezuela a menina dos olhos do caudilho. Sánchez afirma que Fidel por décadas investiu em ampliar sua influência no país ("esperou 40 anos para pôr a Venezuela no bolso, mas conseguiu", diz), tendo seu esforço coroado com a ascensão ao poder de Hugo Chávez. Desde então o país fornece a Cuba 150.000 barris de petróleo por dia, em troca do envio de médicos cubanos para as favelas venezuelanas. Revela também que Kadhaffi, o ditador assassino e excêntrico que Lula, quando presidente, abraçou e chamou de "meu irmão", não gozava do mesmo prestígio com os Castro, que o consideravam desequilibrado. (O ditador líbio não teve um fim de carreira dos mais dignos: foi esquartejado pelos populares revoltosos, que o acharam escondido em um cano da rede de esgoto. De lá pra cá o ex-presidente Lula declina do direito de se pronunciar sobre o picotado passamento do irmão.) Na tentativa de mensurar o patrimônio do comandante cubano, o veterano guarda-costas considera razoável o cálculo da americana Forbes sobre a fortuna pessoal de Fidel (que costumava referenciar sua poupança como reserva técnica), em torno de US$ 900 milhões de dólares - e chama o alegado franciscanismo do caudilho de "uma grande piada": "Cuba é uma coisa de Fidel. Ele é seu dono, à maneira de um proprietário de terras do Século XIX. É uma hacienda de 11 milhões de pessoas." Sobre os médicos cubanos enviados aos países pobres (entre os quais o Brasil) e que recebem uma pequena fração do salário efetivamente pago, sua avaliação é que "essa variante moderna de escravidão não deixa de lembrar o laço de dependência que existia nas plantations de 200 anos atrás, com o povo subordinado a um senhor todo poderoso." É um depoimento corajoso de um cubano orgulhoso, que enaltece o poderio militar de seu país (cuja maior glória foi o suporte dado na guerra de Angola, emplacando Agostinho Neto no poder, depois sucedido por José Eduardo dos Santos, que está no comando do país desde... 1979!). Em meio a todas essas oportunas revelações, fica cada vez mais patente a legitimidade e o direito do antigo protetor (chefe da escolta presidencial, campeão nacional de tiro, faixa preta em 3 diferentes artes marciais e formado em Direito) se revoltar e contar o que sabe. Juan Reinaldo Sánchez se insere na tradição dos fugitivos que lograram escapar com vida de regimes totalitários e transformaram seu calvário em história. Seu relato e sua trajetória pessoal superaram minha reticência e, conclusivo, o livro não foi refutado pelo regime. Decepciona que um mito como Fidel Castro, quando intimamente exposto, se assemelhe mais a um chefe do tráfico num morro carioca do que a ideia que se faz de um líder socialista. A propósito, a descrição do funcionamento do Departamento MC ("Moeda Convertível") revela uma das maiores operações de tráfico de drogas do continente. Conhecido entre os próprios oficiais do exército cubano como o Departamento de "Maconha & Cocaína", o MC recebia toneladas mensais de drogas das Farcs e as redistribuía com o emprego dos aviões militares de Cuba, sob a supervisão pessoal do próprio Fidel, temeroso de erros. Quando os americanos descobriram a rota, ligada a Pablo Escobar e ao Cartel de Medellín, e a denunciaram mundialmente, nos anos 80 (repercutindo inclusive entre o povo cubano), Fidel pôs como bode expiatório o responsável pelo exército nacional, general Ochoa, tido até então como o maior herói militar do país - e executado covardemente por Fidel, de quem apenas cumpriu ordens. Ali, a deslealdade de Fidel para com um dos seus mais valorosos e leais oficiais foi a gota dágua na reverência de Sánchez ao seu comandante. Pouco tempo depois, ao requerer sua aposentadoria por tempo de serviço, foi preso e torturado, e, após dois anos, libertado. Permaneceu constantemente vigiado, até que conseguiu fugir e reiniciou sua vida na América. Os verdadeiros heróis raramente são conhecidos. Diante do pelotão, Ochoa, segundo Sánchez, teria gritado: "Atirem. Vocês não me assustam". Infelizmente para nosotros, o fantasma da revolução cubana permanece assustador, quando assacado contra a pacata democracia brasileira. Conhecendo a preferência popular pelos vultos eivados de simbolismo, que se prestam a manipulações diversas e oportunas, a história de Fidel, com o passar dos anos, tende a inflar cada vez mais seu aspecto lendário, a do valente guerrilheiro que, em uma pequenina ilha do Caribe, emergiu em farrapos das selvas tropicais para trovejar contra o imperialismo. Um Davi barbudo contra um Golias ianque. Mas, para quem pôde conhecer as entranhas do regime em suas minúcias e pormenores, como o presente que Sánchez nos traz, a trajetória soa mais a comédia. Trágica, exótica, inusitada - mas, ainda assim, uma canhestra pantomima latino-americana.

Editora Paralela, 232 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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