"Rondon", por Larry Rother

terça-feira, abril 07, 2020 Sidney Puterman

Sempre achei que o Brasil tinha muito Rondon na geografia, mas pouco Rondon na estante. Se você digitar "Rondon" na busca da Amazon, o maior site livreiro do mundo, são poucas as entradas. você vai achar sua antiga autobiografia, publicada ainda em vida, seis décadas atrás, e também o livro escrito pelo seu discípulo Darcy Ribeiro, lançado logo após. Mas, paradoxalmente, encontramos mais publicações estrangeiras, devido à Expedição Rondon-Roosevelt (que há pouco completou um século), do que títulos nacionais - estes se contam nos dedos da mão. Se fossemos medir pela reduzida bibliografia disponível na própria pátria, Rondon parece ter sido um personagem de limitada relevância histórica. Por outro lado, se considerarmos os toponímicos e as centenas de ruas batizadas com nomes derivados de Rondon (Rondônia, na própria, Rondon, no Paraná, Rondonópolis, no Mato Grosso, Avenida Marechal Rondon, em cada cidade brasileira etc - logo veremos mais exemplos), ele é top ten na nossa História, o que indica um tremendo descompasso entre o grau do conhecimento e a frequência com que é homenageado. Qual então a real dimensão de Cândido Mariano da Silva, o matogrossense que passou para a posteridade sob o epíteto de Marechal Rondon? O pouco estudado ou o muito referido? É à tarefa de destrinchar a persona histórica que se propôs o jornalista americano Larry Rohter. Para quem não sabe, ou não lembra, o escritor ganhou fama por ter sido alvo de uma rumorosa tentativa de expulsão do país (que não chegou a ser levada a cabo). Intelectual identificado com as causas da esquerda e correspondente do New York Times no Brasil durante o governo Lula - sobre quem, via de regra, fazia matérias generosas -, em certa feita se referiu à queda de Lula por uma cachacinha. Não caiu bem. Destemperado com o comentário, o então presidente Luís Inácio solicitou que Rohter fosse posto para fora do Brasil, pois o correspondente "difamara o país no exterior". Pessoas no governo - dizem que o próprio José Dirceu, à época o homem-forte da nação -, teriam dissuadido Lula de prosseguir na empreitada, pois não pegaria bem, perante a comunidade internacional, alguém com status de líder democrático censurar e exigir a deportação de um jornalista, pelo mero comentário de um hábito etílico do ocupante da presidência. Que, ressalte-se, não era mentira. Lula gostava de beber. Para alívio geral, a exigência imperial foi abandonada e Larry pôde continuar trabalhando no país, sem restrições. Inclusive lançou um livro sobre suas impressões brasileiras, "Deu no New York Times", sobre o qual eu dei uns pitacos aqui no blog, em 2011. Mas fato é que, embora tendo voltado pouco depois para os EUA, os vínculos de Rohter com o Brasil permaneceram. Uma prova competente deste laço é esta biografia de Rondon. Como eu dizia acima, o enorme personagem carecia de uma atualização da sua trajetória; se não houve brasileiros interessados em fazê-la, que bom que um gringo tomou essa providência. Talvez o nosso primeiro - e maior - ecologista, Cândido Rondon foi desbravador e indigenista. É verdade que não brilhou em todas as áreas de atuação para as quais foi convocado: como funcionário do governo, recebeu demandas militares, diplomáticas e políticas, nas quais sua performance foi de mediana a apagada. Porém, como homem de ação na exploração dos cafundós do continente, não houve brasileiro igual. O registro meticuloso de Rohter, ao longo de 565 páginas, recupera as etapas de uma vida quase centenária (ainda que o biógrafo peque por deixar lacunas importantes na abordagem da vida pessoal de Cândido Mariano) e nos oferece uma perspectiva contemporânea, destacando uma preocupação com o meio-ambiente que não tinha paralelo em sua época. Rondon passou a maior parte da sua existência no mato, vadeando rios, superando cachoeiras, cruzando matas e subindo montes. Os índios foram seus protegidos e seus aliados (sendo ele próprio um caboclo que descendia da tribo Bororo). Além do script afinado com a agenda ambiental, a visão estrangeira de Rohter nos auxilia na correta interpretação deste brasileiro, já que comumente nós nos olhamos no espelho e não gostamos do reflexo dos nossos conterrâneos - tema provocante para um debate, fosse maior o nosso interesse pela brasilidade. Outro approach instigante de Rohter vem ao final da obra, onde sua narrativa passa pela morte de Rondon sem praticamente olhar para o caixão - e segue em frente. É que o corpo do marechal ainda não havia esfriado quando seu nome passou a ser manipulado pelos militares (que iriam usar e abusar do seu legado a partir de instaurada a ditadura). O autor cobre não somente este período imediato após o falecimento do biografado, como vem até a segunda década do novo milênio, seguindo as pegadas da sua herança involuntária. E que "herança" - na rota selvagem aberta por Rondon há um século, Larry come poeira em Rondonópolis, se hospeda no Rondon Palace e almoça na churrascaria Rondon Grill (bem ali, na praça de alimentação do shopping Rondon Plaza). Um fim de mundo pródigo em música sertaneja, picapes e chapéus de caubói, e em tudo diferente do dono do nome que a tudo batiza. Como pude aprender na leitura da biografia, Cândido Mariano foi desde a juventude um homem simples e estudioso. Um filho da terra que se sentiu sempre melhor na selva do que na cidade. Metódico, obstinado e de um rigor quase fanático, Rondon formou com sua esposa uma extensa prole, com a qual não conviveu (esta é uma das deficiências da obra de Rohter, que não investiga o quanto a ausência constante de Rondon impactou sua família - não assistiu o nascimento dos filhos, nem estava próximo na morte da filha). Um autêntico crente do positivismo, foi discípulo de Benjamin Constant, o artífice da queda da monarquia e da proclamação da República. Funcionário da burocracia militar, suas batalhas eram enfiar postes mata afora, levando o telégrafo aos confins do Judas. Apupado como o bandeirante moderno, explorou um Brasil desconhecido, corrigiu mapas, estabeleceu fronteiras e registrou o curso dos rios. Um deles - talvez o mais enigmático deles - foi o Rio da Dúvida, cujo traçado já o vinha provocando por diversas expedições, sem que pudesse descobrir onde, afinal, ele desembocaria. E foi justamente quando se preparava para uma das mais longas e difíceis conquistas da sua longa vida de explorador que chegava ao Brasil o ex-presidente americano Franklin Roosevelt, atrás de uma boa aventura. Apesar de derrotado na eleição anterior, Roosevelt permanecia extremamente popular nos EUA e no mundo. Aventureiro incorrigível, havia feito um safari midiático na África do Sul e viera de lá se achando o Tarzan em pessoa (o Pantanal matogrossense iria mostrar a ele que o buraco era mais embaixo). Desembarcado na capital federal, seu excesso de confiança fez dele candidato a parceiro de Rondon na exploração seguinte - que, para a infelicidade do magnata ianque, era a que ia em busca da foz do misterioso rio. Cândido, que era muito exigente na montagem da sua equipe e jamais admitiria que a caravana norte-americana aderisse ao seu grupo, se não se tratasse de uma importante ação diplomática, relutou, mas aceitou a missão. Curioso é que, inicialmente, o grupo foi denominado Expedição Roosevelt, sem sequer trazer o nome de Rondon. O erro foi logo corrigido, assim enfrentaram os primeiros desafios: ficou claro o suficiente que a travessia era para mateiros profissionais, e não para amadores que superestimavam os próprios dotes. Realmente, não foi um convescote. Ao contrário de diversão pitoresca, foram meses de fome e perigo. Dois mortos e dezenas de feridos. A ponto do próprio Roosevelt, exaurido e doente, pedir para ser abandonado, para morrer à própria sorte. Rondon não aceitou, o presidente americano sobreviveu e passou o ano seguinte fazendo palestras mundo afora sobre a expedição - descritivo que, de fato, é a parte mais atraente desta biografia de Rohter. A constatação é desfavorável ao trabalho do biógrafo, mas devo registrá-la. Em seu "Rondon", os três meses da referida aventura tomam 100 páginas. Na média, dá mais de uma página de biografia por dia de vida, com o total da aventura com Roosevelt montando a quase um quinto da obra. Confira o desequilíbrio: nas demais 465 páginas do texto são cobertos os demais 92 anos do Marechal, o que dá uma mera página para cada 72 dias. Como eu já citara, a desproporção matemática denuncia a baixa quantidade (e inevitável hiato de qualidade, face à carência de dados) do material que Rohter logrou apurar sobre a vida de Rondon, em oposição à farta bibliografia existente sobre Roosevelt - o que inclui a famosa expedição amazônica. Esta escassez não permite que a biografia dê vôos ainda maiores e o nosso mergulho na estória deste brasileiro ímpar acaba mais raso do que gostaria o leitor exigente (chato, eu). Não obstante, como já elogiei, o volume de informações organizado pelo jornalista proporciona acompanhar minuciosamente a sua trajetória pública - o que já é um feito e tanto. E, bravo, que não se esconde na hora de desconstruir o consenso moderno em torno do mito. Falo aqui do Rondon naturalista e desbravador, personagem que nos parece ter sido sempre merecedor de aplausos unânimes. Mas Larry nos recorda que não foi sempre assim. Rondon teve muitos críticos, alguns famosos e incensados, como o hoje laureado escritor Lima Barreto, que, então, o satirizava e admoestava: "No Brasil, atualmente, há uns caboclistas muito engraçados. Um deles é o sr. Rondon, hoje general, que tem um ar feroz de quem vai vencer a Batalha de Austerlitz. O general Rondon nunca venceu batalhas, nem as vencerá, porque o seu talento é telegráfico. Não há general como ele para estender linhas de telégrafo: mas também não há general como ele para catequizar caboclos." Na leitura da biografia, parece que a veia de combatente militar de Rondon deixava a desejar; mas a questão da catequese é discutível, porque Rondon se opunha a ela. Mas, pergunto, até onde a aproximação entre índios e brancos que ele provocava não levava a uma inevitável domesticação do indígena, ou seja, a uma catequese, na prática? leia o livro e dê sua opinião. Veja que Lima foi além: "Toda gente admira Rondon porque sabe andar léguas a pé: contudo, acho eu que essa virtude não é das mais humanas. O que o general Rondon tem de mais admirável é a sua fisionomia de crueldade. Vê-se nele a sua vocação de ditador e ditador mexicano. Tudo o está levando para isso, inclusive as suas descobertas já descobertas e a sua determinação de coordenadas de certos lugares pelo telégrafo." O mulato Lima não aliviava o caboclo Cândido. Um outro adversário de enorme peso na comunidade internacional foi o lendário explorador britânico Percy Harrison Fawcett (há quem afirme que foi nele que Steven Spielberg se inspirou para criar o personagem Indiana Jones). O Fawcett em carne e osso foi o personagem central do livro de David Grann "Z, a cidade perdida" (comentado aqui no blog), que viraria filme, e de dezenas de outros romances e películas. Fawcett e Rondon nunca se bicaram. O brasileiro sempre viu no intrépido britânico - que fazia suas incursões só e armado - uma ameaça aos índios e um desserviço ao país, já que seus objetivos eram pecuniários e pessoais. O explorador buscava uma cidade amazônica que ele julgava perdida e na qual estariam enterrados tesouros que o enriqueceriam. Seu fim, trágico, é conhecido: desapareceu em sua última exploração, nos anos 20, empreendida em oposição à Rondon, que fez o possível para evitar que o governo brasileiro patrocinasse a incursão. Percy partiu para a sua última aventura na companhia do próprio filho e nunca mais voltaram. Nos anos seguintes, outros aventureiros se lançaram à procura do explorador. Muitos não regressaram, sugados pela floresta tropical. Ninguém jamais encontrou pistas do paradeiro de Percy Fawcett e seu filho. Bem, retornando ao general Cândido Mariano da Silva Rondon, seus opositores não foram apenas as celebridades. Políticos e militares de diversos matizes e calibres também tiveram seus desapontamentos com o general-mateiro. Personalidades que conquistaram seu lugar na História, como Luiz Carlos Prestes, Juarez Távora e Getúlio Vargas, foram seus adversários e algozes. O último chegou a deixá-lo em prisão domiciliar e o primeiro escapou do cerco liderado por Rondon, dando início ao que se tornaria conhecido como "Coluna Prestes". Foi uma das poucas ações de cunho realmente militar liderada por Rondon - e o suficiente para fazer da esquerda brasileira sua inimiga inarredável. Difícil agradar a todos, e dá para perceber por este meu extenso resumo que o caboclo Mariano foi polivalente. Ele foi o positivista, o republicano, o pacifista, o ecologista, o indigenista - a obra de Rohter conta de cada uma destas facetas, incluindo o diplomata, que por quatro anos foi o mediador brasileiro no conflito entre Colômbia e Peru. Fala de uma expedição pouco conhecida de Rondon, a exploração da cadeia montanhosa do Tumucumaque, na fronteira do Brasil com a então Guiana Holandesa, hoje Suriname, que a empreendeu já entrado nos 60 anos. Pelas nossas leis atuais, o velhinho ia ter direito a fila preferencial no banco, mas subia montanhas inexploradas e vivia por semanas a fio exclusivamente do que a mata lhe dava. Daí a lenda em que se tornou. E, se a lenda Rondon teve momentos de contestação e de desprestígio durante o governo Vargas, na década de 50 ele por diversas vezes foi cogitado para receber o Nobel da Paz - e talvez só não tenha sido agraciado por incompetência do próprio governo brasileiro no rito de apresentação. As tentativas e cogitações para conceder a ele o Nobel se sucederam até sua morte, quando, de acordo com as regras do prêmio, deixava de ser elegível para a homenagem. Morto, a imagem do pacificista foi logo apropriada pelo governo militar, que criou o Projeto Rondon, para levar a juventude universitária aos mais distantes rincões do país e dar a ela uma experiência genuína de Brasil. O projeto foi um sucesso - a tal ponto, que durou quase duas décadas, sobrevivendo ao fim da própria ditadura. Sintomático da sua pluralidade é que, ao levar jovens estudantes brasileiros para auxiliar comunidades amazônicas desassistidas, o projeto proporcionava uma experiência coletiva à juventude muito próxima aos ideais da esquerda, ainda que promovida pela direita que torturava jovens rebeldes. Incongruências brasilianas. Já nesta época, um quarto de século após sua morte, o Marechal Rondon carregava a aura mítica que o cerca até hoje. A biografia meticulosamente alinhavada por Larry Rohter merece reverência e gratidão, mas não encerra a interpretação do personagem Cândido Mariano da Silva Rondon. Talvez ele nunca receba um trabalho à altura do ícone que é. O brasileiro urbano não se vê refletido neste caboclo erudito, quase um capiau boliviano, que passou à posteridade com um nome francês que sequer lhe pertencia. Mas essa anedota eu não vou contar, que a procure no livro aquele que tem interesse pela História do país. Ou, preguiçoso, que peça ao google. Rondon tem muito de Brasil, mas nós temos muito pouco de Rondon.

Editora Objetiva, 565 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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