"Sobre a tirania", por Timothy Snyder

domingo, janeiro 07, 2018 Sidney Puterman

Mais que um livro, o pequenino "Sobre a tirania" é um catecismo contra o autoritarismo. Um alerta para se ler repetidamente. Um libelo em prol da liberdade. Uma ilha de lucidez: cada parágrafo é um bilhete enfiado pelo náufrago em uma garrafa virtual. Orientado pelas suas convicções, rodeado pela História e assombrado pelos povos que inadvertidamente sucumbiram à tirania, Timothy Snyder identificou em Donald Trump um potencial de dano similar. Então, desprezando os circunlóquios, seu livro é apontado contra o governo de Trump e a ameaça à ordem mundial representada pelo atual presidente dos Estados Unidos. Não pense, entretanto, que é um livro histérico, de alguém que meramente estigmatiza a personalidade controvertida de um velho popstar americano eleito por uma audiência mesmerizada. Não é. Seria uma redução idiota (estamos cheios delas poraí e seria besteira perder tempo com preconceito barato). Se mira Trump, é porque o livro de Snyder é um livro de paralelos. Ele contrapõe os indícios do momento atual aos indícios mal interpretados - ou omissamente acatados - dos regimes totalitaristas do século passado. Historiador do nazismo, o autor é especialista no processo de aceitação do III Reich por parte da população, que aquiesceu com a lenta instauração da tirania, como sapos cozinhados em água fervente. Seu texto é dividido em 20 capítulos e é um livro panfletário, o que seria péssimo; só não o é porque os panfletos são ótimos. Assim, cada capítulo é uma fábula, uma advertência, um panfleto. São intitulados de forma ostensiva, sem rodeios: "Não obedeça de antemão"; "Defenda as instituições"; "Cuidado com o Estado de partido único"; "Investigue"; o alarmista "Mantenha a calma quando o impensável chegar"; e por aí vai. No terceiro deles, um chamamento que nos vem bem a calhar: "Precisamos de votos de papel, que não podem ser adulterados remotamente e sempre podem ser recontados." Para reforçar sua mensagem, convoca pensadores, poetas e escritores. Um dos mais citados é um judeu alemão que pessoalmente admiro, Victor Klemperer. Linguista pouco conhecido (injustamente, penso eu), deixou uma obra ímpar na análise das técnicas de discurso do nazismo: "Na linguagem de Hitler o povo sempre significava algumas pessoas e não outras, os conflitos eram sempre lutas e qualquer tentativa por parte de indivíduos livres para ver o mundo de uma maneira diferente era difamação do líder." Falando em linguagem, ferramenta essencial da plataforma política de Trump e outros enganadores célebres, Snyder fecha o capítulo "Acredite na verdade" com sua definição de um recente modismo empulhador: "A pós-verdade é o pré-fascismo." Já eu sempre achei a pós-verdade o fim-da-picada. Árdua tarefa selecionar passagens do texto para citar - ele é quase todo pertinente e conciso, ou seja, citá-lo seria quase transcrevê-lo. Mas chamo a atenção dos leitores para a síntese brilhante de Timothy sobre a Segunda Guerra Mundial e também seu instigante conceito da "política da inevitabilidade", em seguida confrontado com o que denomina "política da eternidade". Por fim, uma virtude especial do livrinho - uma pequena jóia de muitos quilates - é que ele é de bolso, o que traz convenientes vantagens. Além da literal, ele é sob medida para ter seus parágrafos fotografados e postados nas redes sociais. Com isso, o produto inverte a tese: no texto, Snyder recrimina a superficialidade e inconfiabilidade da internet e prestigia o livro ("afaste as telas da sua vida e cerque-se de livros"); mas, neste formato especial, o livro se encaixa como uma luva para reprodução no face, twitter, instagram e que tais. Vou postar. Amigos meus que tenham interesse no livro não precisam comprar, nem me pedir emprestado: eu dou um exemplar para quem quiser. O danado é tão em conta que a edição impressa custa mais barato (R$ 16,10) do que a edição virtual (R$ 16,90). Eu encomendei quatro agora há pouco, o primeiro já vai para um grande amigo que aniversaria dia 14 próximo - e que, agora, já sabe o preço, foi mal a indiscrição. Mas ele vale ouro (o amigo), o livro é pura prata e o resto é o reles dinheiro. Vão me restar três e eu recomendo a quem ganhe que faça o mesmo: compre quatro exemplares e os dê de presente a quem você admira a inteligência. Privilegie estes, porque os carentes dela não terão mesmo o que fazer com ele. O que é uma pena - e um verdadeiro atraso para este planeta tão castigado.

Companhia das Letras, 168 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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