"O Dilúvio", por Henryk Sienkiewicz

sexta-feira, janeiro 03, 2014 Sidney Puterman

Se optei por um approach lúdico da trilogia de Henryk Sienkiewicz em "A Ferro e Fogo", não se pode deixar em segundo plano seu minucioso artesanato. A trilogia, publicada em seis diferentes tomos, totalizando mais de 3.000 páginas, é cerebralmente estruturada, com uma espinha dorsal que é replicada em cada um dos seus três livros: defesa da integridade nacional; herói valente e honesto; amada pura e apaixonada; vilão forte e poderoso que sequestra a amada do herói; combates entre forças desproporcionais, com o inimigo sempre em maior número; e umas boas pitadas de histrionismo (essa receita era o prato de resistência da época). Originalmente publicada em polonês, no formato de folhetim, em um momento em que a Polônia já não existia territorialmente há mais de 100 anos, foi valiosa na consolidação do nacionalismo local e agigantou o nome do seu autor (que, com "Quo Vadis", ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 1905). O segundo livro da trilogia, "O Dilúvio", editado em três tomos, se debruça sobre um importante fato histórico, a guerra de polacos e lituanos contra os suecos (o título da obra é o mesmo do período histórico). Boa parte das dificuldades polonesas derivava do fato da Polônia ter optado em determinado instante da sua trajetória por uma monarquia não-sucessória, onde seus reis eram eleitos entre os nobres e cujos filhos não tinham o direito de sucedê-los. Isso gerou um ininterrupto confronto político e a tendência da eleição de nobres estrangeiros, que não pertencessem às principais famílias e com isso viessem a desequilibrar o jogo do poder. Pelo que dizem os historiadores - e me parece bem óbvio -, o sistema foi um desastre, de proporções trágicas, que fulminou a estabilidade geográfica da Polônia, já tradicionalmente uma colcha de retalhos.  O livro aborda o momento conflagrado em que o trono polonês era ocupado pelo rei sueco e as tratativas diplomáticas e bélicas que antecederam sua retomada. A obra de Henryk Sienkiewicz foi publicada 250 anos depois do conflito, mas no fim de um século em que russos, alemães e austríacos haviam suprimido a Polônia do mapa da Europa - e reforçou o patriotismo de um povo sem pátria. Nesse livro, o herói é o bad boy Andrzej Kmicic, um bravo militar que se tornara sanguinário bandoleiro e que retorna à lei para defender a República. O contexto histórico é por demais complexo e, se as dezenas de descrições de estratégia militar são fascinantes, em instante algum temos uma suficiente perspectiva histórica da situação. Não obstante, estudiosos afirmam que Sienkiewicz não visava um texto academicamente irreprochável, e sim suscitar a paixão do povo polaco pela lendária história do país. Conseguiu. Como na primeira obra da trilogia, um grande vilão é o contraponto ao protagonista, e dessa feita a pecha coube a Janusz Radziwill (personagem histórico), tirano violento, inescrupuloso, estuprador e traidor, com mais valências malignas que o Bohun rival de Skrzetuski na guerra contra os cossacos, em "A Ferro e Fogo". A principal personagem feminina, Aleksandra Olenka Billewicz, é também mais sanguínea que sua equivalente no livro antecessor, Helena Kurcewicz... E chega: mais não conto. Por fim, aproveitando a deixa, revelo que a minha avó polonesa, como as heroínas de Sienkiewicz, também tinha sobrenome terminado em "wicz": Cirla Rawicz. Não tem nada a ver com a história, mas a avó é minha, o blog também e é com ela que eu termino. Beijo, vó Cecília.

Editora Record, 1.548 páginas (em três tomos)

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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