"Ligeiramente fora de foco", por Robert Capa

sexta-feira, abril 07, 2017 Sidney Puterman

Terminei de ler o colossal livro de Antony Beevor sobre o Dia D e já emburaquei no livro de Bob Capa, o mais celebrado dos fotógrafos de guerra e tido como o principal fotógrafo da linha de frente da Segunda Guerra Mundial. Capa costumava dizer aos seus colegas correspondentes de guerra: "Se suas fotos ainda não estão boas o suficiente, talvez você ainda não esteja perto o suficiente." Eu não esperava demais do livro de Robert Capa, depois da avalanche de informações de Beevor. Ledo engano. Era um livro vibrante e entusiasmado - com um protagonista louco por uma guerra, e beeeem perto de todas elas. Capa se metia nos conflitos e queria estar na vanguarda da vanguarda. Ele conta como conseguiu ir para a linha de frente que combatia os alemães no Norte da África. E como conseguiu depois saltar com os primeiros paraquedistas americanos na invasão da Sicília. E como estava na primeira leva da primeira companhia de desembarque na Praia de Omaha, na Normandia, no Dia D. E como estava ao lado dos soldados que primeiro chegaram para libertar Paris. E como seguiu para a fronteira hispânica, onde reencontrou amigos com quem havia participado da Guerra Civil Espanhola contra o fascismo de Franco. E o melhor é que todas estas estórias, absolutamente impressionantes, são narradas com humor blasé por este judeu húngaro, aventureiro e bon vivant. O fato de ser húngaro, a propósito, o deixou em maus lençóis algumas vezes. Ao saltar de paraquedas por trás das linhas inimigas (detalhe, ele nunca tinha saltado de paraquedas na vida), à noite, caiu em cima de uma árvore e ficou pendurado sem poder gritar por socorro - pois graças ao seu arrevezado sotaque húngaro, os próprios colegas iam achar que era um alemão com péssimo inglês e iam metralhá-lo pendurado mesmo. Teve que esperar amanhecer para ser retirado dos galhos. Capa não perdia chance de caçoar de si mesmo. Na Sicília, tendo ultrapassado a vanguarda (de novo...) para fotografar um ataque, acabou ficando preso no fogo cruzado, e, pior, sem ter onde se proteger: "Ali, deitado como uma panqueca no chão frio entre duas linhas de guerra, só tinha duas alternativas: ficar apavorado de bruços ou ficar apavorado de costas." Mas era mesmo estar no centro da guerra o que Capa mais amava. Quando fotografava regiões já livres do tiroteio, com os nazistas expulsos das cidades, se lastimava: "Fazer o registro da vitória é como tirar fotos de um casamento na igreja dez minutos depois que os recém-casados foram embora." Suas impressões de Nápoles, depois de libertada, eram pouco generosas com a italianada: "Os napolitani faziam bons negócios com as coisas que tinham roubado do nosso exército, oferecendo aos americani tudo, até as próprias filhas." Robert Capa conta também sua ligação com Hemingway, polêmico escritor americano que citei no último post e citarei também em um dos próximos. Se reencontraram na Londres pré-Dia-D e, para comemorar a ação que se aproximava e o reencontro dos dois, Capa ofereceu uma festa ao Papa, tomaram todas e, voltando para seu hotel, o quase indestrutível Hemingway acabou com a cabeça rachada e 48 pontos de costura, por conta de uma batida de carro. Depois se desentenderam, já guerra Europa adentro, por conta do fotógrafo ficar fazendo fotos do escritor, estropiado, quando os dois se protegiam e Hemingway havia levado a pior. A verdade é que Bob Capa não perdia uma foto. Eu já comentei que Capa estava na primeira leva a desembarcar na Normandia. Também é sabido que 9 em cada 10 soldados que participaram deste primeiro desembarque morreram afogados ou sob fogo alemão. Mesmo antes, Capa já sabia que as chances de sobrevivência eram incertas. Dentro da barcaça que em poucos minutos iria descer sua rampa sobre o mar, lançados n'água sob artilharia inimiga, a 100m da praia, Robert Capa ouviu a proposta do coronel Taylor, a seu lado. O comandante sugeriu a ele que não fosse com a Companhia E, a primeira leva de soldados aliados a desembarcar na praia de Omaha, no alvorecer de 6 de junho - e sim que esperasse um pouco e seguisse com a Companhia B, que estaria também no âmago da ação, mas com chances mais favoráveis de se manter vivo. Capa, com medo, escutou o coronel. Ainda com medo, refletiu sobre a diferença entre um correspondente de guerra e um soldado comum: "Um correspondente de guerra consegue mais drinques, mais garotas, melhor pagamento e mais liberdade do que um soldado, mas creio que ter a permissão de ser um covarde, sem ser executado por isso, é uma tortura. Então resolvi ir mesmo na primeira leva." As páginas seguintes são as melhores do livro e o livro é um dos melhores da estante. Bob conta a invasão. Muito poucos dos que participaram dela sobreviveram para testemunhá-la. Ele fez mais: fotografou-a. As fotos saíram trêmulas, ligeiramente fora de foco. Pior: quase todos os filmes que fez foram velados na revelação. Sobraram poucas fotos, uma delas entre as mais famosas da guerra, que também ilustra este post (e o livro sobre o Dia D, em detalhe na resenha anterior). Capa conta mais, mas quem quiser que leia o livro. Ele analisa a fibra do soldado alemão: "Foram muito duros em sua bem preparada fortaleza, mas não tão duros a ponto de lutar até o último alemão: apenas até o primeiro americano que chegou perto o bastante para ser perigoso - então eles ergueram os braços, gritaram 'Kamerad!' e pediram cigarros". Depois, muito depois, quando a Alemanha já estava tomada pelos americanos, ele conta como era difícil um correspondente de guerra com sotaque húngaro avançar, principalmente porque os soldados americanos perguntavam, diante do seu inglês suspeito, esquisitices como "Qual é a capital do Nebraska", coisa que ele nunca soube e que lhe valeu virar alvo de alguns tiros. Ao fim do livro, eu, que esperava pouco, já me queixava de como seriam tristes os meus próximos dias sem Robert Capa. Mais que história e bom humor, este húngaro debochado presenteia o leitor com dezenas de fotos fantásticas tiradas com a sua Contax. Muito tempo depois, em 1954, fotografando um conflito na Indochina, Bob pisou na mina terrestre que o matou. Seria mesmo ridículo se ele morresse de derrame em Nova York. Tinha 41 anos e pelo menos meia dúzia de fotos que se tornaram emblemáticas de algumas das mais sangrentas guerras havidas no planeta. Endre Ernö Friedman, o verdadeiro nome de Robert Capa, é daqueles sujeitos com um tal grau de desprendimento e ousadia que renovam nossa esperança na humanidade - se há caras como Bob, nem tudo está perdido. Por fim, no meu cantinho "descendo o pau na capa", avisem ao designer genial que fez a capa do livro do Capa que ela ficou uma merda.

Editora CosacNaify, 293 páginas

Obs.: Perdoem-me esta montagem picareta que fiz sobre a mais famosa foto do Dia D e de Robert Capa, comigo de canastrão altaneiro no mirante da praia e colocando o próprio Capa, fardado, sentado na mureta. Poderia dar muitas justificativas para o acinte, mas só tenho uma: não resisti. Foi mal.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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