"Palavra de gringo", por Hugo Gonçalves

sábado, outubro 03, 2015 Sidney Puterman

O livro, cujo subtítulo é "Um olhar estrangeiro sobre o Brasil", me aguçou a curiosidade. É sempre educativo ver como somos vistos e termos a oportunidade de aprender sobre nós mesmos a partir do olhar sem vícios de um observador externo. Ou, pelo menos, era o que eu esperava. Assinado por dez correspondentes estrangeiros há longo tempo no país (cinco deles têm moradia fixa no Rio, três residem em São Paulo e dois já não estão mais aqui), nele os "gringos" narram sua visão do Brasil, partindo cada qual de um ponto de observação específico. Como não há homogeneidade de estilo e de background entre os jornalistas - mesmo não necessariamente desejável, seria uma unidade que caberia ao editor Hugo Gonçalves -, a obra é desigual. São dez longos depoimentos, onde cada um relata, a seu modo, a sua experiência brasileira. Apesar da minha otimista expectativa inicial, constatei, decepcionado, que "Palavra de gringo" nos oferece, em contraponto aos clichês comuns sobre o Brasil, uma sucessão de neoclichês que já há alguns anos compõem uma "segunda visão" sobre o país (nisso, o velho "Águas fortes cariocas", escrito com fito semelhante pelo argentino Roberto Arlt, no início da década de 30, é tremendamente superior). Os textos não fogem ao rame-rame usual do choque de culturas. Uma parte resvala bovinamente para o panfletarismo demagógico, outra para o discurso universitário lugar-comum; ambas muitas vezes vitimadas pela ignorância trivial. Na maioria, são textos frágeis e prolixos. Um dos que fogem a esta limitação é o sueco Henrik Jönsson, com mais de uma década de Rio de Janeiro, casado com brasileira e com filha carioca. Depois de tecer loas à nossa espontaneidade e bem viver, ele deplora a corrupção, obstáculo para que ele se regularizasse como cidadão brasileiro, e a exemplifica com o Mensalão e com Lula, seu ex-ídolo ("O Brasil é um país corrupto e aqui a burocracia é necessária para que a corrupção funcione. Já o Mensalão demonstrou que aquele homem que me inspirara era, afinal, farinha do mesmo saco.") Em um artigo para o "Dagens Nyheter", de Estocolmo, tentou explicar aos suecos a finalidade dos cartórios: "Tive que recuar até os tempos do império romano para que os suecos pudessem compreender o sistema. Mesmo assim não entenderam nada. Não podiam aceitar que uma autoridade privada funcionasse, ganhando dinheiro, para confirmar que o documento de identidade da pessoa era, de fato, o documento de identidade da pessoa em questão. Na Suécia, o documento de identidade funciona como prova de identidade." Por estas plagas, o óbvio tem seus mistérios. A correspondente americana Jenny Barchfield fala da obsessão tupiniquim com a beleza física - incluindo aí as plásticas e as academias. Nessa toada, caçoa das mulheres-fruta e reclama da paixão do brasileiro pela bunda feminina. O alemão Phillip Lichterbeck conta a história de uma dessas mulheres negras e humildes que, por força da sua personalidade e coragem, rompe as barreiras sociais e, exuberantemente vitoriosa, se torna referência em sua comunidade. De quebra, o teutão dá uma enaltecida no ex-governador do Rio, Sergio Cabral. O português João Moreira fala de futebol, com pertinência e bom-senso. A marroquina Lamia Oualalou se dedica ao crescimento do poder evangélico (político e mercadológico) e destaca a nossa tolerância religiosa. Bom texto. O hermano Santiago Farrel falou sobre a nossa inusitada capital, Brasília, da nossa crônica impontualidade e acusou nosso desinteresse pelo restante da América do Sul. A partir daí, a peruana Veronica Goyzueta acirrou as críticas sobre esse mesmo desinteresse e enveredou por um discurso subdesenvolvido dos anos setenta. Tentou minimizar a vergonha que foi o acerto de bastidores da seleção peruana na Copa de 78 (que entregou o jogo para a Argentina e levou um 6x0 vexaminoso), comparando-a à nossa seleção em 98 e alude a um "mal-explicado suborno" da Nike. A peruana radicada em São Paulo se queixa do escasso valor que damos à cultura dos nossos indígenas, achando que nos rendemos demasiado ao colonizador português (friso eu que a cultura inca, a dela, estava em um estágio muito mais avançado do que a dos nossos nativos; e que, se eles são mais índios do que espanhóis, nós somos mais portugueses do que indígenas, gostemos disso ou não). Na sua metade final, Goyzueta abandona a cantilena histórica e opta por uma dissertação demagógica e - sem me surpreender - por uma apologia do governo petista. Encaixou. O inglês Tom Phillips é ácido, cortante e veraz. Desembarca na favela da Coréia e traça o perfil do pastor Dione, que salva a alma dos traficantes. Desmonta as estorinhas para boi dormir que são as UPPs e relata o cotidiano do Alemão. Brilhante. O colombiano Waldheim Montoya começa provocativo, espicaçando a apatia brasileira e me fez crer que viria ali um texto demolidor. Não veio. Foi mais do mesmo. Acabou reclamando - como seus colegas argentino e peruana - que o Brasil está de costas para a América Latina, etc. Entre muitas miudezas, filosofou sobre as filas; se queixou que a atriz Alice Braga não é famosa aqui, mas que a tia, Sonia Braga, é; se estendeu falando do futebol brasileiro, mas com precário conhecimento de causa (colocou Kaká e Zagalo no panteão dos nossos grandes jogadores, e ignorou Didi e Nílton Santos). No fim, deu também sua puxada de saco no governo petista. A americana Julia Michaels, há décadas no Brasil, fez também um texto confuso e com uma politização descabida, tendo por ponto de apoio as empregadas domésticas. Embarcou nos mesmos clichês de que a antiga classe pobre é hoje classe média por ter TV de plasma - mas suprime que essa nova "classe média" continua sem esgoto, sem transporte, sem saúde, sem educação e sem segurança. Uma visão simplista e partidária, que mostra que os correspondentes não fogem muito à mesmice medíocre a qual estamos habituados no geral. No concernente a este Brasil imaginário e idealizado, uma referência constante no texto dos jornalistas é o nome de Stefan Zweig. Seja com conhecimento ou não da obra do austríaco, quatro dos dez correspondentes se referem a ele ao falar de uma visão estrangeira do Brasil. Seu nome é sinônimo do forasteiro erudito que escolhe o Brasil como nova pátria. No caso deste emigrante em questão, ele, depois de alguns meses de aclimatação, se matou. Sintomático. Resumindo, o livro, com belas ilustrações de Rita Wainer, de capa dura e com uma desconfortável diagramação de linhas largas, à guisa de edição de luxo, é patrocinado pela Prefeitura do Rio e pelo Terminal Garagem Menezes Côrtes. À exceção dos autores que destaquei, pinçando aqui e ali, tem algumas boas sacadas. No todo, dispensável. Palavra de carioca.

Editora Língua Geral, 153 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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