"Cangaços", por Graciliano Ramos

quarta-feira, janeiro 13, 2016 Sidney Puterman

Li, moleque, "Vidas secas". Devo ter gostado. Não lembro direito. Fui uma criança de 500 livros. De tudo quanto é tipo de qualidade. Todos apaixonadamente lidos. Mas, cá pra nós, é um despropósito dar vidas secas prum moleque ler. Não é hora. É muita suculência pra pouca sapiência. Ainda assim, da lavra sertaneja, li às pencas. Entre outros, li "Cazuza", de Viriato Corrêa, este sim um romance nordestino apropriado prum guri. Mas a laconicidade do autor de "São Bernardo" soa amarga demais sob a vista dum pirralho. A nervura de uma obra arenosa como é o romance de Graciliano Ramos deve ser oferecida quando o fedelho em questão desenvolveu o bestunto a ponto de saber tomar tento da iguaria servida. Me faltava, então, tutano. Se é que você me entende. Embora tenha aberto esta joça falando do tal romance, meu tema aqui é outro, um ajuntado do mestre em pauta, "Cangaços". A obra é uma coletânea de artigos e contos publicados por Graciliano Ramos no período de 1931 a 1941, em organização de Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn. Depois do rol assinado por Graciliano, há um posfácio assinado pelos organizadores. É um estudo que revela aquilo que se sente quando se lê e explica aquilo que sentimos quando lemos aquilo que está escrito, minudenciando o que o escritor pensou ou pensou pensar na hora em que escreveu. Mas isso é pros mais taludos, gente de universidade. A gente mais ignorante, lendo, se muito, sente. Mas o pobre de leitura não percebe o verdadeiro sentido daquilo que é dito com tamanha esfolação como o explicado por um que seja autêntico doutor das letras. São assim os "livros de explicação". Acadêmicos estudiosos avançam vírgula a vírgula no texto doutrém pra explicar a intenção subliminar da vírgula. Eu continuo sem entender. Sou um leitor burro. E o burro do leitor identifica somente as obviedades. Como óbvio, por exemplo, era o forte racismo do autor - que, via de regra, não entendia como um indivíduo provido de pele branca, louro e de olhos azuis, pudesse agir mal como se fosse um preto. Brancos têm caráter. Inegavelmente, aparentam ter. Então deviam tê-lo, pois, não o tendo, era um desperdício ter uma aparência confiável e agirem como um mal aparentado. Graciliano era aqui espelho da época, tempo em que se defendia ostensivamente o branqueamento como fórmula de ascensão social e quando o politicamente correto era sentar a piaba na negrada. Ainda que eu me espantasse, os acadêmicos não acharam o racismo de Graciliano digno de menção. Volto a eles depois, entretanto. Bora falar do livro com textos do alagoano. Alguns dos artigos selecionados são bem convencionais, com aquela falta de personalidade da qual o senso comum transborda. Noutros o verniz dos tempos pesa demais e deixa o escrito datado. A coisa vai nessa toada, assim morna, até que contos como "D. Maria" e os capítulos "Cadeia" e "O soldado amarelo" irrompem, transmudam o firmamento e trazem todo o vigor da prosa enxuta de Graciliano Ramos. Como comenta Otto Maria Carpeaux na 23a nota na página 182, "(...) a mestria singular do romancista reside em eliminar tudo o que não é essencial: as descrições pitorescas, o lugar-comum das frases feitas, a eloquência tendenciosa.  Seria capaz de eliminar ainda páginas inteiras, eliminar os seus romances inteiros, eliminar o próprio mundo." Os capítulos que citei foram a transcrição de manuscritos datados de 1937 e que, no ano seguinte, integrariam sua obra-prima "Vidas Secas". São magistrais. O que, lendo, não enxerguei quando guri, vejo nitidamente agora. Pasmo, caí de joelhos. Agora, burro velho, pude saborear, pouco que fosse. Estes tais capítulos que li não sobra nada. Até o espaço entre as palavras é conteúdo. Engulo em seco. Vou pegar na minha estante o livro porcamente lido no ginásio e, hoje sim, vou lê-lo em sua plenitude. Sei que vai arder. É livro sofrido. Para isso, para me resgatar o conhecimento de um fora-de-série, a coletânea em si muito me serviu. As dezenas de páginas ao final, onde os "organizadores" dissecam cada linha de cada conto, me interessam bem pouco. Há parágrafos inflados com vinte adjetivos que, sorteados à bangu e trocados de lugar uns com os outros, não mudariam nada do significado. Paradoxo: muitos dos contos zombam do saber empolado e vêm os sabichões empoladamente falar, cheios de empáfia, dos subtextos do cara que deles, já no antanho, debochava. Dou uma cuspida entre os dentes e vejo a saliva molhar a terra. Leio de banda. Bode escaldado, quando o autor me entra com "relativizar"(ó praga), eu já absolutizo: lá vem besteira. Pois então. Não faltaram. Mas isso foi nos finalmentes. Nos primeiros dois terços do livro, o que se tem é o processo de amadurecimento do escritor. Assim, o maior mérito da obra é lembrar o leitor da grandeza de Graciliano e quase impor a quem o lê que corra para se deixar matar de sede pela palavra árida deste sertanejo desterrado. Vidas secas, aqui vou eu.

Record, 221 páginas

Post Scriptum: após ter escrito a resenha, hoje pela manhã li no jornal mais um pacote de sugestões de livros da colunista Cora Rónai. Rola sempre umas dicas. No artigo ela confessa seu mau querer pelas aulas de literatura. Diz a filha do escritor húngaro Paulo Rónai: "Tinha dificuldade em pensar literatura como os professores me pediam. Literatura eu sentia." Pois é. Valeu, Cora. Tamo junto.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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